Destaque:

Estado brasileiro na encruzilhada. Já sabemos o que a Globo quer... e você?

Queria poder dizer que criei esta montagem, mas não... recebi de um seguidor no Facebook, como comentário a um artigo anterior. rs ...

21.11.16

Escândalo: babás proibidas de usar banheiro de clube!

ESPECIAL CONSCIÊNCIA NEGRA:
RACISMO E HERANÇA AFRICANA


<<Escândalo>> : babás proibidas de usar banheiro de clube!

Ora, escândalo?

Qual? Onde?


Por Romulus

- A foto das socialites colombianas que chocou a Espanha: empregadas negras usadas como ornamento para ostentar em coluna social!

- Sócia do clube no Brasil: "Não tenho preconceito, mas as babás não necessariamente são pessoas extremamente educadas. Infelizmente, nem todas as classes têm acesso à mesma educação. Elas não necessariamente vão puxar a descarga ou deixar o banheiro limpo. Não é nada contra as babás. É questão de ordem e disciplina." (aff...)

- Com o modesto crescimento do poder de consumo, é possível que uma babá iconoclasta tenha assistido a “The Help” (“Histórias Cruzadas”). Possivelmente, tenha pensado um pouco consigo e se questionado por que a tal proibição de usar o mesmo banheiro que os patrões – retratada naquele Mississipi dos anos 60 – ainda vigorava no Rio de Janeiro do século XXI.

- Pergunto aos pais-patrões: por que babá também nos fins de semana? Não dá para cuidar dos filhos nem no sábado e no domingo?

- Filho é mais do que modelo pra fotos bonitinhas no Instagram e no Facebook. Mais também do que um mero veículo para a realização do impulso narcisista de passar a carga genética adiante.

* * *


Essa foto, usada para ilustrar o post, foi publicada na revista "Hola!" espanhola - algo como a "Caras" brasileira - na época em que vivia no país.

~ Obviamente ~ chocou a opinião pública espanhola, que, diferentemente das colombianas retratadas, não está acostumada ao uso de seres humanos como ~ ornamento ~ para ostentação.

Pois acreditem:

- As socialites colombianas retratadas é que ficaram ~ chocadas ~ com o ~ choque ~ que a foto provocou na Espanha!

Duvidam?

Pois ouçam a matriarca em entrevista:

<<¿Y por que? ¡Hombre, el trabajo (??) no es un insulto!>> (?!)


E desliga o telefone na cara dos entrevistadores no min. 7:25 do vídeo!


Menos mal que a foto também provocou polêmica - senão ultraje - na própria Colômbia:

"Fotografía causa polémica en lideres Afros"


*

Longe da Espanha, perto da Colômbia: Brasil

Minha experiência escrevendo para um blog é recente. Coisa de meses ainda. No entanto, algo que já notei neste curto espaço de tempo é que muitos temas sobre os quais já se comentou voltam à tona meses, quando não semanas, depois.

Pois no post de hoje temos mais um exemplo dessa repetição:

- A pauta é a segregação das babás.


Ainda não escrevia o blog quando aquela foto da patroa ruiva, junto ao marido também branco, levava seus filhos para a passeata pelo impeachment de março.


Bom, “levava os filhos” é modo de dizer. Quem levava de fato as crianças era a babá, devidamente destacada do grupo por um uniforme branco.


Naquela oportunidade, externei - mais uma vez - nas redes sociais meus pensamentos sobre o fenômeno. Faço isso há anos, cada vez que o assunto volta à tona com mais um registro fotográfico “polêmico”.

Cada vez que o faço, algum amigo se mostra contrariado com o que digo e faz questão de deixar por escrito tal contrariedade nos comentários. Da última vez, foi uma parente – que conhecia o tal casal da passeata e saiu em ardorosa defesa dos amigos.

Nas últimas semanas o assunto “segregação das babás” voltou às páginas dos jornais e às redes sociais.

Por quê?

Devido à repercussão da proibição pelo Country Club de que as babás que acompanham os sócios mirins nas quadras e piscinas do clube usassem os banheiros dali.

Mas o que é esse Country Club?

Trata-se do tradicional refúgio do old money carioca, ora. A Veja Rio informava em 2013 que:

<<Tão desejado quanto difícil de obter, o título do Country torna seu proprietário membro de um mundo à parte. São apenas 850 sócios. Para um entrar, alguém tem de sair. Ali, as pessoas convivem como se estivessem em uma extensão de sua sala de visitas. Nesse ambiente, um postulante que não seja bem-visto costuma receber sinais inequívocos de que levará bola preta antes mesmo de passar pela votação? a maioria retira a candidatura para evitar a humilhação pública. A empresária Luciana Rique, herdeira de um conglomerado de centros comerciais, seria submetida à votação na mesma noite em que Guilhermina foi recusada. Ao perceber que não teria chance, decidiu pular fora. Três anos atrás, a artista plástica Adriana Varejão havia feito o mesmo ao notar que um grupo de sócios não simpatizara com seu então marido, Bernardo Paz (veja o quadro na pág. 24). "Guilhermina foi vítima de uma covardia, da mesma forma que eu fui há vinte anos. O voto dos conselheiros não deveria ser secreto, mas sim declarado", diz Aparecida Marinho, ex-mulher de Roberto Irineu Marinho, presidente das Organizações Globo, gongada em 1991 com três bolas pretas. Hoje, ela vai ao Country como dependente do filho>>

Ok, pelo relato acima temos alguma ideia sobre a clientela, a ambiência e o etos do clube.

Assim, conhecendo o pensamento da elite brasileira tradicional, o que impressiona é que a tal da plaquinha nas portas dos banheiros proibindo a entrada das babás não tivesse sido colocada antes – e não que tenha sido colocada agora!

Fantasiei uma hipótese: talvez não fosse necessária até então. Assim como não há placa avisando às babas se devem ou não respirar no clube, não havia necessidade da placa com a proibição de usarem o banheiro. Certamente porque as babás mais antigas “sabiam o seu lugar”.

Indo adiante na fantasia, é possível que alguma babá mais jovem e sem tanta experiência em locais daquela natureza tivesse tido a impertinência de desrespeitar aquela regra não escrita. Com o modesto crescimento do poder de consumo da classe trabalhadora na última década, é possível que essa babá iconoclasta tivesse assistido na TV a cabo em sua casa a filmes como “The Help” (“Histórias Cruzadas”). Possivelmente, após se emocionar e rir dos absurdos retratados no filme, tenha pensado um pouco consigo e se questionado por que a tal proibição de usar o mesmo banheiro que os patrões – retratada naquele Mississipi dos anos 60 – ainda vigorava no Rio de Janeiro do século XXI.


Por certo viu que era hipótese absurda - dado o anacronismo - e que só se mantinha por hábito das velhas babás. Começou então a usar o banheiro do clube quando a necessidade apertava. Como não via nada de errado nisso, não procurava fazê-lo de forma velada. Até mesmo comentou com algumas colegas e indagou por que não faziam o mesmo.

Como diz a tagline (mote) do filme “The Help”, “a mudança começa com um sussurro”.
Pronto.

A confusão estava dada.

As babás se empoderaram a ponto de usar abertamente os banheiros do clube e puseram abaixo a regra não escrita que as impedia. Evidentemente que, diante do que viram como impertinência, os sócios e administradores do clube entenderam por bem afixar a tal placa proibitiva. Deixaram por escrito a regra antes tácita.

Talvez os autores da iniciativa sejam admiradores do Presidente interino Michel Temer e deliciem-se não apenas com o uso de mesóclise em pronunciamentos verbais (!), mas também com citações em latim.

Acharam o máximo a epígrafe escrita na língua morta na sua carta a Dilma Rousseff de dezembro último: verba volant, scripta manent – ou, “as palavras se esvaem, o escrito permanece”. Não apenas acharam o máximo, como viram sua utilidade prática:

- Não contemos mais com o bom senso e o recato (“recato”!) das babás! Deixemos por escrito que o Rio do século XXI é sim como o Mississipi dos anos 60. Ou seja, “Iguais, mas devidamente separados”, como dita o bom e velho segregacionismo (equal but separate).



O relato do caso pode ser visto no jornal O Globo, dos irmãos Marinho – os três evidentemente sócios do Country, ora como não?

Estava então dado o enredo para a polêmica emergir nas mídias e nas redes sociais mais uma vez. Estava também dada a deixa para eu dar o meu pitaco de novo – e outra vez desagradar amigos e parentes com isso.

*

Por um pouco de preguiça dominical e mesmo pela falta de necessidade de atualizar o discurso, posto que o Brasil quase nunca surpreende, reproduzo o que escrevi da última vez. À época a nova manifestação do fenômeno era a babá uniformizada na passeata pelo impeachment – também essa dominical.


Escrevi então ao seu patrão, que mostrara revolta em post nas redes sociais com a repercussão da foto de sua família com a babá na passeata:

<<Oi, banqueiro, tudo bom? A babá já botou os meninos para dormir? Ok, então vamos conversar...
Você paga o seus impostos?
Ok, você cumpre uma obrigação.
Paga empregados em dia e “trata com dignidade"?
Ok, você cumpre mais uma obrigação.
Você gera vários empregos - 4 na sua casa apenas?
Acho ótimo.
Sabe o que não é OK para mim?
Parece que você e a sua mulher trabalham, né... que bom. Legal que vocês têm uma babá para ajudar durante a semana.
Quer dizer... não só durante a semana, né? Como vemos na foto, no fim de semana ela também está aí com vocês.
Pergunto: não dá para dar banho, trocar fralda, dar comida, brincar e dar atenção aos filhos nem no sábado e no domingo?
Bem, para mim tem que dar sim.
É uma opinião pessoal, mas para mim filho é mais do que modelo pra fotos bonitinhas no Instagram e no Facebook. Mais também do que um mero veículo para a realização do impulso narcisista de passar a carga genética adiante.
Será que os meninos não acham isso também?
Sabe outra coisa que me incomoda na foto?
Esse uniforme que você dá para a sua funcionária usar - o hediondo uniforme branco, onipresente na Zona Sul do Rio. Ainda bem que quando saí do país a moda estava só começando.
Qual o objetivo?
Evitar que as pessoas pensem que a senhora negra é da sua família? Que é uma amiga?
Ou é para mostrar o seu status aos seus pares, compondo com o carrão importado e o relógio de grife?
Mais uma vez, opinião pessoal mas acho bem cafona.
Dou a dica: menos é mais!
Por fim, o que também me incomoda é não precisar olhar a foto para saber que a patroa que vai na frente é branca (e ruiva!) e que a empregada que vai atrás é negra - e não o contrário. Eu queria viver num Brasil em que não desse para saber disso antes de ver a imagem.
Sonho, né?
Eu sei... o pintor Debret não viveu para ver isso. E infelizmente eu também não vou.
Mas vou continuar lutando para vida da babá ser melhor, mesmo que seja em detrimento do seu conforto – e do seu bolso!
Nada pessoal>>

*

Dias depois li a ótima coluna da Flávia Oliveira sobre aquela babá – a da passeata e não as do Country Club. Concordo com tudo, menos com uma interdição ao debate na parte final. Escrevi então:


<<A Flávia Oliveira é ótima. Ela dança no fio da navalha e dá nó em pingo d’água para escrever uma coluna que ainda dá para ler no Globo, entre poucas hoje (só penso no Ilimar e no Anselmo). Ela tem menos sucesso, mas o mesmo esforço, na Globonews - já que o controle no audiovisual é maior. Mas liberdade ela tem em eventuais tweets, como quando detonou a carta “vazada” de Michel Temer à Presidente Dilma.

Só discordo da parte final do texto da Flávia, em que ela diz:

“A reflexão é essencial e profunda, mas não foi ela que motivou o confronto virtual do início da semana. Este foi resultado da polarização que não hesitou em fazer de uma trabalhadora doméstica o ícone de uma disputa política para a qual ela não foi chamada. Maria Angélica de Lima, 45 anos, moradora de Nova Iguaçu (RJ), mãe de duas filhas, patroa de uma babá, eleitora de Aécio Neves (PSDB), insatisfeita com o governo, mas contra o impeachment de Dilma — soubemos de tudo isso pela reportagem de Bruno Alfano, anteontem, no “Extra” — foi silenciada e ignorada na web. Os gladiadores virtuais se apropriaram de sua imagem e subtraíram dela o protagonismo, a individualidade, o direito de contar a própria história. É algo que não se faz. Por causa alguma.”

E por que discordo dessa interdição da Flávia na parte final?

Porque um lado ou outro se apropriarem da imagem para debater não quer dizer que negaram esse direito à empregada também.

Ora, não nos é permitido discutir as circunstancias dos cenários e das pessoas que pintou Debret então?


Ninguém – e nenhum historiador – ouviu os modelos (escravos) das pinturas. Obviamente que ao fazê-lo formulamos suposições e simplificações para criar uma abstração e, a partir daí, fazer extrapolações.
Pegando outra área conhecida dela, bem sabe a Flavia que todo modelo econômico é uma abstração. Mas nem por isso deixa de ser material para debates sobre a realidade, muito mais complexa e com mais variáveis. O mesmo vale para a foto.

Bem fez o jornalista do Extra que foi ouvir a babá no dia seguinte, ora.

Diminuiu o grau de abstração daquele arquétipo.
Bem fez a Flávia também em repercutir a entrevista, que não teve o destaque merecido.
Pois eu, que debati a foto no dia em que saiu, também repercuti a entrevista com a babá dias depois.

Tudo faz parte. Uma coisa não exclui a outra.

Nota: a coluna da Flávia é mais uma oportunidade para ver como seria bom ter uma mídia plural, com colunistas com backgrounds diferentes, para ter visões mais matizadas e menos absolutas sobre tudo e sobre todos>>

*

Epílogo:

Quando digo que o Brasil não costuma surpreender e que os "escândalos" teimam em se repetir, vejam que a realidade não me desmente. Termino de escrever o post, dou uma olhada nas notícias e...

Atenção aos trechos em negrito... não teria encaixado tão bem com o post nem se eu tivesse combinado com o G1:

Do G1

29/05/2016 13h04

Ela teria dito a gerente: 'Volta para sua senzala'.
Suspeita será levada para Bangu neste domingo.

Uma mulher de 58 anos foi presa neste sábado (28) suspeita de injúria racial no Leblon, Zona Sul do Rio. Segundo testemunhas, Maria Francisca Alves de Souza, de 58 anos, teria insultado, com palavras de cunho racista, um funcionário negro da rede de supermercados Zona Sul. O caso ocorreu por volta das 20h, em um dos endereços mais nobres do Leblon, Zona Sul do Rio: a Rua Dias Ferreira, conhecida pela grande movimentação de bares e restaurantes, sobretudo à noite (veja o vídeo).

Testemunhas contaram ao G1 que a suspeita insultou o funcionário com frases como "Volta para sua senzala' e 'quilombo'. De acordo com um dos funcionários, a mulher fez as ofensas depois que o colega que teria sido vítima de racismo se negou a lhe prestar um favor — buscar um produto enquanto ela aguardava na fila do caixa — o que motivou a discussão.  Ela também teria achado que foi tratada com deboche por uma caixa.

O funcionário que denuncia ter sido ofendido é um gerente, identificado como Paulo Roberto Gonçalves Navaro, 45 anos. Ele se disse indignado com as ofensas e chamou a polícia. "Infelizmente é muito triste que hoje em dia aconteça isso", afirmou Paulo.

No local, a mulher se defendeu dizendo que "senzala" e "quilombo" são, na visão dela, exaltações à raça negra. "Olhem as senzalas das telas de Debret", em referência ao pintor francês Jean-Baptiste Debret, conhecido por suas pinturas sobre o período escravocrata brasileiro no século 19. Sobre o "quilombo", a mulher diz se referir a Zumbi dos Palmares, líder negro e, segundo ela, "ícone da resistência negra".

Houve um princípio de confusão e gritos de "racista" até policiais do Batalhão do Leblon chegarem ao local. A mulher, o funcionário e outras testemunhas prestaram depoimento na delegacia do bairro.

A Polícia Civil classificou o crime como injúria racial e prendeu a agressora. Ela vai ser encaminhada para o Complexo Penitenciário de Bangu, na Zona Oeste do Rio, na tarde deste domingo (29). "Infelizmente esse tipo de crime é comum, mas muita gente não vem à delegacia para relatar. É importante o relato de testemunhas para que as medidas sejam tomadas. Estamos voltando ao discurso do ódio. E racismo é crime", disse a delegada-titular da 14ª DP (Leblon), Monique Vidal.

Em depoimento a polícia, segundo a delegada, Maria confirmou que usou as palavras "senzala" e "quilombo", mas afirmou que não tinha intenção de ofender.

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Achou meu estilo “esquisito”? “Caótico”?

- Pois você não está só! Clique na imagem e chore suas mágoas:


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Quando perguntei, uma deputada suíça se definiu em um jantar como "uma esquerdista que sabe fazer conta". Poucas palavras que dizem bastante coisa. Adotei para mim também. 





3 comentários:

  1. Meu assunto favorito. Sendo fenotipicamente branco segundo padroes brasileiros e com extensa bagagem familiar escravista, sinto-me pessoalmente tocado pelo tema da segregacao racial no Brasil. Um tema nao abordado aqui eh a falacia do pais arco-iris multiracial feliz e sem racismo que pintaram do Brasil por anos. Tem muito "dono de engenho" por ai que se defende de ser racist dizendo que "aqui, meu senhor, racismo nao existe, nao te avisaram?". A falacia da nacao arco-iris fez e faz um mal danado a nossa ainda extremamente racista nacao.

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  2. QUE PENA, SOMENTE PARA POBRES, PRETOS E PETISTAS!
    > https://gustavohorta.wordpress.com/2016/11/22/que-pena-somente-para-pobres-pretos-e-petistas/

    "QUE PENA, SOMENTE PARA POBRES, PRETOS E PETISTAS …. E PUTAS! ..."

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  3. Está ótimo, levanta todas as questões que é mesmo preciso levantar. Só acho que o problema da tal “democracia racial” é bem mais complexo do que faz supor a oposição em preto e branco (hihihi...) entre a “visão de classe” de Florestan Fernandes e a “visão culturalista” de Gilberto Freyre, que faz parte de um complicado debate implícito no que vocês estão dizendo. Quando se pensa no patrimonialismo que está entranhado na sociedade brasileira e a transitividade entre as fronteiras do público e do privado a que ele dá lugar, fica mais fácil entender o racismo à brasileira.

    Ninguém se diz racista no Brasil. "Imagine, tenho tantos amigos negros! Minha empregada? É como se fosse pessoa da família!" Incluído na esfera privada, ele "deixa de ser” negro, é "pessoa", conhecida e de confiança. Mas vá um típico morador de Higienópolis por acaso atravessar sozinho o Largo Santa Cecília - só um pouco mais abaixo, ao final da R. Dona Veridiana - numa sexta-feira à noite, quando os Filhos da Santa afinam seu toque de bateria nos barezinhos da praça, num samba rasgado! Já a reunião de tantos negros causará um certo mal-estar. Pior ainda se, afastados do pagode, um ou dois negros se mantiverem isolados, apreciando a movimentação do Largo...

    O bacana tentará passar o mais longe possível deles e, se de repente cismar que os negros estão observando seu curioso caminho em zig-zag, não hesitará em dirigir-se aos policiais estacionados no postinho da praça, para denunciar a atitude "suspeita". "É, não dá pra confiar não nesses sujeitos. Nunca se sabe o que um indivíduo desses pode fazer. Espera aí que vou lá verificar o que o cidadão tá fazendo e, conforme o caso, a gente encana o elemento”! Pronto. Agora, no espaço público, estamos diante de um negro real, mas desconhecido - indivíduo, sujeito, elemento... cidadão!

    Acho que é mais eficiente combater o racismo desmontando essa máquina perversa de percepção - esse olhar duplo, dúbio - do que simplesmente confrontando o racista com o discurso padrão da intelligentzia bem pensante - diferença de classe, direitos, cidadania (cidadão, como assim? não quer dizer outra coisa?) - ou o politicamente correto dos movimentos negros. Não é que nada disso esteja errado, pelo contrário! Mas garanto que muita gente não irá entender sequer do que você está falando. Honestamente, eles continuarão a te dizer que não são racistas, não se sentem racistas, sequer sabem que são racistas. Nenhum país atravessa impunemente mais de três séculos de escravidão e ninguém vive numa sociedade patrimonialista, que muda a fronteira entre o público e o privado segundo sua conveniência, sem guardar as marcas de uma "naturalização" da diferença como desigualdade.

    Você fala da perspectiva do final de um longo processo quando pensa na sua hipotética empregada que nem imagina que deveria saber “qual é o seu lugar”. Uma década de políticas de inclusão social de fato trouxe muitas mudanças, com um princípio de correção de desigualdades sociais seculares. Milhões de brasileiros saíram do mapa da fome e outros tantos deixaram as classes E e D pela classe C. Como raça e condição social sempre andaram muito próximas, fazendo par, de repente um número “excessivo” de negros passou a ser visto em lugares onde “naturalmente” não deveriam estar. Não custou muito para que o vago desconforto diante de uma visão de mundo que já não explicava a experiência cotidiana se transformasse aos poucos em insegurança, ameaça e perigo. Do ressentimento à cultura do ódio instilada pelo avanço de uma extrema direita que consideraríamos sepultada desde o fim da ditadura, o passo foi ainda menor. Acho que esse recalcado é o que hoje emerge à luz do dia nas passeatas verdeamarelas na Paulista e nas redes sociais. Melhor assim, diz você, porque, agora visível, vai ser possível combatê-lo. Concordo, é claro, mas sinto dizer que acredito que temos uma longa batalha pela frente.

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