Destaque:

Estado brasileiro na encruzilhada. Já sabemos o que a Globo quer... e você?

Queria poder dizer que criei esta montagem, mas não... recebi de um seguidor no Facebook, como comentário a um artigo anterior. rs ...

9.10.16

Homem: “Chimpanzé do Futuro”? Ou “Exterminador do Passado”?, por Romulus, André B & Antropólogo

Homem: o “Chimpanzé do Futuro”? Ou o “Exterminador do Passado”?

Por Romulus & André B, com crítica de Antropólogo

Como já registrei em várias oportunidades, prezo M U I T O os comentários que recebo dos leitores aqui no GGN – sem paralelos na blogosfera ou em toda a internet brasileira. Como disse recentemente ao próprio Nassif:
Esse público (...) deixa comentários no GGN ou nas redes sociais riquíssimos, que costumam originar novos posts meus – justamente a graça da web 2.0 (ou 3.0 já...).
Como já tive a oportunidade de dizer e de registrar, inclusive em post, esse “ativo” do GGN não tem par na blogosfera: comentários do junior50, do Arkx (que convenci a se cadastrar no GGN lá atrás!), da misteriosa Hydra, do André Araújo, do André B, da Vânia e de tantos outros. Sem esquecer, é claro, do meu amigo Ciro, que eu “arrastei de volta” para o GGN neste ano.
Gente, inclusive, com posicionamento ideológico e background totalmente diferentes do meu. As visões deles costumam ser diferentes das minhas. Isso me força a retrabalhar as teses. Ou para reafirmá-las, com maior convicção, ou para refutá-las, ou para ficar no meio do caminho, numa síntese (os 3 já aconteceram!).
Pois bem.
Eis aqui nova ocasião em que um rico comentário, desta vez do André B, originou discussão na sessão de comentários que agora transformo em post e divido com vocês.
Que novos posts será que as discussões deste aqui podem gerar?
– Pois me ajudem a descobrir comentando aqui e nas redes sociais!

*   *   *
André B
A unidade possível e a impossível.


Me sinto esclarecido em várias dúvidas e objeções que coloquei no primeiro post da série. O que ficou esclarecido para mim,  é que as ideias de esquerda tal como você as vê são as ideias da falecida social democracia europeia dos anos 1970-1980(socia democracia 2 digamos). Falecida porque fracassou retumbantemente cedendo ao neoliberalismo, a mesma história repetida aqui com o PT segundo sua narrativa a qual tendo a concordar. Mas discordo talvez dos motivos disso, pois acho que é totalmente coerente a social democracia 2 ceder ao neoliberalismo, parcial ou totalmente, dependendo da ocasião.
Ideias social democratas com práticas neoliberais é algo coerente porque o ponto de partida de ambos é o mesmo: a propriedade privada dos meios de produção é insuperável porque está na 'natureza humana'. A social democracia tal como existe hoje só se diferencia da direita neoliberal por sua história, renunciou ao objetivo do 'socialismo'. Compartilha com a direita neoliberal a premissa de que a 'grande batalha da História' já está acabada, com o discurso do 'fim da história' propalado pelos Think Thanks liberais na década de 1990. Talvez só se diferencie nisso por um aspecto subjetivo: a direita vê o fim da grande batalha da história como seu triunfo, a social democracia o ve como um lamento trágico: "Não há alternativa" dizia a neoliberal Margareth Tatcher...
Se a propriedade privada dos meios de produção e consequentemente o mercado é a única forma de organização da economia e da vida posto que é algo 'natural', seus efeitos perversos só podem ser mitigados pelo Estado da mesma forma que ele faz com os efeitos de um furacão ou de um terremoto. Dai que os objetivos - 'igualdade de oportunidades' e 'mitigar diferenças de resultados' possam ser defendidos por liberais como Sen, Rawls ou até por um Milton Friedman. Para alguns são necessários politicas, para outros a igualdade do direito a propriedade privada é o suficiente para 'igualdade de oportunidades'. A diferença aqui é só de como como gerar igualdade de oportunidades ou mitigar diferenças de resultados, mas todos dentro da premissa de que a propriedade privada dos meios de produção e o mercado são instituições 'naturais'.
O ideal da Esquerda me parece, é uma transformação radical da sociedade. Radical porque vai a raiz do problema - a perspectiva temporal longa, a grande batalha da História como você chamou. Parte de que 'aquilo que o ser humano faz ele pode mudar', se existe uma natureza humana é que ela é histórica - o homem muda inclusive a natureza que ele não criou - e portanto não há batalha sobre a organização da sociedade que esteja perdida ou ganha para sempre. Me parece que o que caracteriza o objetivo da esquerda é a revolução, no sentido amplo de transformação radical da sociedade. A esquerda que não é hibridada  - ou no vulgar, 'cruzada' - com a direita discorda em como alcançar essa transformação radical da sociedade. Se por uma ruptura completa, se por uma mudança gradual - o que propunha a social democracia original que tinha como objetivo o socialismo (social democracia1) -ou se por uma mistura dos dois.
Dai que a esquerda pode apoiar determinadas politicas 'social democratas' (ou reformistas) - posição a qual eu tendo a concordar, embora ache cada vez mais difícil delas serem implementadas e terem eficácia - , mas vendo-as como meios para continuar a grande batalha da História, mas não como fins em si mesmo, sem perder o objetivo. Só nesse sentido é possível uma aliança meramente tática da esquerda  - ou seja aquela que não compartilha ideias com a direita e por isso é pura no sentido literal da palavra e não no 'moralista' - com a social democracia  - a 'esquerda' hibridada com a direita. Com essa esquerda hibridada com a direita não há unidade possível além disso, pois ela está do outro lado da 'grande batalha da Historia'.
*
Romulus
Homem: do chimpanzé ao exterminador do futuro

Muitas coisas para comentar.
Muito obrigado pelo excelente – e longo sim! – comentário.
Tem gente que tem alergia a texto grande – vira e mexe apanho pelo tamanho dos posts.
Eu não tenho!
*
Alguns pontos:
>> Dai que os objetivos - 'igualdade de oportunidades' e 'mitigar diferenças de resultados' possam ser defendidos por liberais como Sen, Rawls ou até por um Milton Friedman.
Quando vc coloca Sen e Rawls como “liberais”, é preciso esclarecer para os demais que não os tenham lido: são ideólogos do liberalismo político. Não necessariamente do liberalismo econômico. Aliás, parte das proposições de ambos são totalmente incompatíveis com o laissez-faire.
Sobre Friedman, discordo. O que ele defende é uma “renda mínima universal”.
Isso seria maravilhoso!!
E, aliás, era bom que aqueles que acham (kkkkk) que defendem os ideais de Friedman soubessem que, “no fundo”, em escritos “esquecidos”, ele tinha ideias como essa. Ideias que – Oh, Deus! – poderiam ser classificadas como “vemelhas”.
Imagine!!
Mas...
Uma renda mínima não elimina privilégios da loteria do nascimento. Pode, isto sim – caso seja elevada o suficiente – garantir a tal mitigação das diferenças na chegada.
Dessa forma, para mim a renda mínima friedmaniana não basta.
A “Guerra” continuaria – embora muito mais civilizada.
Ainda haveria proprietários (hereditários) e despossuídos (hereditários).
Em sua defesa:
Digamos que a “Guerra”, de suja, passaria a ser disciplinada por “Convenções de Genebra”.
Mais civilizada, como disse.
*
“Naturalidade do mercado e da propriedade”
Muito pano para manga.
E antropólogos – há alguns aqui – tem muito mais competência para comentar do que eu.
Mas...
Um amigo aí em cima contou que, assim como eu, também é fã do Jared Diamond.
Pois bem.
No seu livro de estreia, Jared nos chama de “o terceiro chimpanzé” (livro homônimo).
Quais são os outros dois?
1.   os chimpanzés propriamente ditos; e
2.   os bonobos – que por muito tempo foram – erroneamente – considerados apenas uma subespécie.
As duas espécies são completamente diferentes e tem vida social totalmente distinta.
Chimpanzés são violentos, territoriais, competitivos e xenófobos. Ao ponto de prepararem emboscadas para matar membros de clãs rivais e roubar suas “mulheres”, cometendo inclusive esganaduras como meio de assassinato e “estupros públicos” para fins “pedagógicos”
*.
Soa familiar?
*
Já os bonobos...
Ah, os bonobos...
Resolvem todos os conflitos e tensões sociais com SEXO! Muito sexo!
Os bichos passam o dia inteiro trepando! Numa promiscuidade generalizada!
Homem x mulher
Mulher x mulher
Homem x homem
Velho x jovem
Já assisti documentários, inclusive, em que um bonobo macho começa a se engraçar para cima da apresentadora (humana)!
Antes que ela ficasse convencida, pouco depois ele começou a dar em cima do cameraman (homem) também.
Ou seja, são “devassos”!
Totalmente hippies: só fazem amor (literalmente) e não a guerra (nem sabem o que é isso).
*
E por que essa digressão?
Bem, tenho de confessar que o “terceiro chimpanzé” me parece, para o bem e para o mal, muito mais próximo do Chimpanzé stricto senso do que do Bonobo.
E daí?
Ora, quem sabe ao certo o que é “natural” e o que não é no “bicho homem”?
Recomendo fortemente que todos leiam o(s) livro(s) do Jared – que incluem até um premio Pulitzer.
Mudam paradigmas de pensamento.
*
Mas o seu post me leva para uma preocupação atual da minha mente, que vc não chega exatamente a abordar diretamente, mas tangencia:
Não acredito na fraude do “fim da história” proposto por Fukuyama tampouco.
Contudo, parece-me certo que nos aproximamos sim do fim de um dos “tomos” da coleção “História da Humanidade”.
E qual o capítulo final desse tomo?
O momento em que a tecnologia tornará – e isso é inexorável – o trabalho físico (e em parte intelectual) humano irrelevante. Ou, ao menos, diminuirá muito a sua importância, a ponto de se tornar marginal para a geração de riqueza.
Dessa forma, não se precisará mais de “alugar o trabalho da mão de obra” humana.
O capital será, finalmente, auto-suficiente.
Prometeu quebrará as últimas correntes.
Mas só “um” Prometeu sozinho...
*
E aí?
Bem, excluindo o cenário “Exterminador do Futuro”, em que as maquinas se rebelam e nos exterminam,* sobram duas opções:
1.   Ou a coletividade “se revolta” e se apropria – por meio do Estado – desse capital autônomo e distribui a riqueza; ou
2.   Viveremos em um mundo “privatizado”, com ricos “declarando independência” dos seus territórios murados e todos os despossuídos rastejando do lado de fora. Para continuar na ficção científica, algo parecido com o cenário do filme “Elysium” (2013), com Jodie Foster, Matt Damon e os brasileiros Alice Braga e Wagner Moura.
Trailer aqui:
Ou uma coisa ou outra.
Porque crer, ainda, na civilidade e generosidade dos atuais donos do capital é impossível.
No dia em que eles conseguirem, finalmente, “declarar independência” dos Estados, será o “juízo final”.
E desse julgamento supremo saem, necessariamente:
-  ou os “Campos Elísios” (um “Elysium” sim, mas para todos);
- ou um inferno de Dante para o 99% da população mundial fora do “Elysium”.
O que pensa disso?
Eu, de mim, penso que do final deste século o “juízo final” não passa.
E o que virá então?
*O cenário “Exterminador do Futuro” não é apenas tema de filme blockbuster. Gente bem “esperta”, como o físico Stephen Hawking, acredita realmente na sua possibilidade. Ou, até mesmo, probabilidade. E, por isso, tem sérias restrições ao curso dado a pesquisas sobre inteligência artificial.
*
1) A relação liberalismo politico e econômico é muito complicada, daria vários posts para discutir isso. Mas hoje o 'liberalismo econômico' é erroneamente identificado com a retórica que vê como única função do Estado a policial.  Erroneamente porque isso é pura retórica, todo liberal com senso minimante prático, admite e advoga algumas formas de intervenção do Estado. O liberalismo econômico tem como núcleo a ideia de que o livre mercado e a propriedade privada são essenciais para o bem comum e o crescimento da riqueza, são insubstituíveis. O mercado pode ser corrigido ou completado pela ação estatal se reconhecem falhas de mercado, isso não é negar nem o liberalismo e muito menos o capitalismo. Essa premissa é compartilhada por Rawls e por Sen, que aliás parte do liberalismo econômico de Adam Smith - e não de outras correntes do liberalismo econômico, que e tão diversificado nos detalhes quanto as teorias socialistas. Se tem uma coisa que eu concordo com os austríacos é que não há meio termo entre liberalismo e socialismo, só estou do lado diferente deles.
2) Posso argumentar pelo campo da filosofia: tomar o comportamento de animais, mesmo próximos na escala evolutiva, para explicar a natureza humana é uma falha lógica, é igualar coisas diferentes. O que torna a nossa natureza humana é o que nos diferencia de todos os outros animais e não que nos iguala, senão seria natureza 'símia'. Não li o Jared, mas o titulo do livro fala por si. Sempre precisaremos nos reproduzir biologicamente, isso é a parte 'natureza' na natureza humana. Mas nos reproduzimos biologicamente de formas criativas, variadas, inovadoras - históricas- e nunca de uma forma fixa. Isso não nos torna nem bonobos nem chimpanzés, nem anjos, só humanos. E ai entra o mercado - é uma forma de nos reproduzirmos biologicamente, uma forma de organização econômica para produzir o que necessitamos para sobrevivência física e social. e como todas as outras formas de reprodução humana é histórica, suas características variam, tem um começo e pode ter um fim como tiveram as organizações tribais, os estados tributários, a escravidão e a servidão.
4) Concordo no ponto que você tocou: o trabalho assalariado está no fim. Concordo ai sim que estamos caminhando para uma encruzilhada social. É não há capital autossuficiente, sem trabalho assalariado,  a encruzilhada é o que vem depois da sociedade capitalista. Concordo que as alternativas ou são o socialismo ou algo muito parecido com o nazi-fascismo em escala talvez maior, com outras formas de apropriação de riqueza que não a capitalista, mas nem por isso melhor do ela. Mas o fim do trabalho assalariado pode ser uma grande libertação, não o fim mas o começo da historia. O fim daquela guerra secular. Acredito que a humanidade nunca perde o que conquistou, só modifica, pode passar por tempos caóticos -  acho que já estamos em um - mas no final sempre caminha para frente.
*
Não peguei o comportamento de animais para explicar o humano. Apenas quis mostrar que animais, por seleção natural + seleção sexual, desenvolvem pulsões “naturais"... “instintos”, digamos assim. A isso se soma o que aprendem com as gerações anteriores (“proto-cultura”?).
Como, por exemplo, usar "esganadura" como método de assassinato entre Chimpanzés. Uma "descoberta" que depois foi "ensinada" a outros.
O homem é sim um animal e - se vc olhar a taxonomia sem o especismo humano - não terá como negar que somos o tal "terceiro chimpanzé".
"O bonobo faz o amor, o chimpanzé faz a guerra".
Quais as nossas "pulsões naturais"?
O que é reflexo do caráter "natural", herdado, dos indivíduos da espécie humana, selecionado naturalmente + sexualmente?
E, por outro lado, o que foi (“apenas”) aprendido "dos pais", que por sua vez aprenderam "empiricamente" (e.g., esganadura nos Chimpanzés)?
Ou seja, o que é parte da nossa natureza por seleção natural + sexual e o que é "apenas" cultural?
Pergunte aos antropólogos se há resposta. E, se houver, se é única.
Meu ponto era: é complicado fazer afirmação sobre o que é ou não "natural" no homem.
Pergunta fundamental para o nosso debate: é natural ao homem "dividir" ou "competir"?
"Socialismo" ou "mercado"?
Argumentar com base no "comunismo primitivo" de caçadores-coletores e povos semi-nômades com agricultura incipiente não vale!
Vc não tem como demonstrar que, diante dos meios ali disponíveis, aquela não foi a estrutura social que teve mais êxito e foi "selecionada". E, depois, ensinada e passada adiante (como a esganadura nos Chimpanzés).
Instinto de competir ou não, minha opinião é:
Dane-se "pulsão natural" e/ou "cultura aprendida" - o processo civilizatório impõe (ou deveria impor) uma sociedade justa.
Mas reconheço que a minha posição não deixa de ser um tanto arbitrária, resultando das minhas convicções morais, éticas, políticas...
Até onde vejo, todas as argumentações sobre “como a sociedade deve ser” o são.
O meu problema com a sua argumentação é, para negar o "mercado", pretender que o socialismo é "natural".
Compreende?
Para mim, nem uma coisa nem outra.
Com a palavra os antropólogos.
*   *   *
Bem, com a palavra a Antropologia mesmo... e eu de novo! (entre colchetes)
>> André B
A unidade possível e a impossível.
Ideias social democratas com práticas neoliberias é algo coerente porque o ponto de partida de ambos é o mesmo: a propriedade privada dos meios de produção é insuperável porque está na 'natureza humana' <<
Antropólogo: Ele pensa no modelo evolucionista do Engels. Modelo generalizante no início da antropologia (Morgan), mas já então atento às variações, com base na sexualidade como princípio “natural” das diferentes formas de organização social, a partir de diferentes sistemas de parentesco: das sociedades matriarcais às patriarcais, tomada como “evolução” “civilizatória” (na “promiscuidade primitiva” do matriarcado, sabia-se quem era “filho da mâe”; o reconhecimento do papel paterno é “melhor” porque garante transmissão regulada de herança – bens materiais, hierarquia e poder) É aí que entra o argumento do Piero sobre a ordem de nascimento dos irmãos como princípio da hierarquia. Portanto, patriarcado e machismo desde sempre vão de par, como reivindicam as feministas.
Veja que o pressuposto aqui é igualar “domínio” e “propriedade” pra passar diretamente da “posse” da mulher à “propriedade” da terra. Mas quem garante que a mulher puxada pelo homem pelos cabelos para dentro das cavernas ficaria lá para sempre, já como um “germe” de família, obrigando o homem a sustenta-la para cuidar dos filhos? Em outras palavras, família já é uma relação social, não mais natural, e pior ainda propriedade (e herança) que já supõe (acho) algum tipo de “proto-contrato”. Não há como pensar essa passagem como continuidade, a não ser pelo mesmo esquematismo que faz o evolucionismo ordenar as sociedades humanas segundo a passagem da “selvageria” à “barbárie” antes de chegar, enfim, à “civilização” (a nossa, é claro, com domínio técnico da natureza, propriedade privada, família patriarcal, religião monoteísta e Estado)
>> (...) Margareth Tatcher...
Se a propriedade privada dos meios de produção e consequentemente o mercado é a única forma de organização da economia e da vida posto que é algo 'natural', seus efeitos perversos só podem ser mitigados pelo Estado da mesma forma que ele faz com os efeitos de um furacão ou de um terremoto
. (...) como gerar igualdade de oportunidades ou mitigar diferenças de resultados, mas todos dentro da premissa de que a propriedade privada dos meios de produção e o mercado são instituições 'naturais'.
(...)  se existe uma natureza humana é que ela é historica - o homem muda inclusive a natureza que ele não criou - e portanto não há batalha sobre a organização da sociedade que esteja perdida ou ganha para sempre. (...) <<
Antropólogo: Aqui, por conta do argumento político, sua crítica vai numa direção mais adequada. Mas ao preço de embaralhar inteiramente o próprio conceito de “natureza humana”. Pra ele é uma espécie de essência e destino do homem, cuja expressão pode ir se modificando ao longo da história, mas sem perder sua natureza quase metafísica, atemporal e imutável, embora variável nas formas históricas de expressão dessa “essência”.
Estamos longe da ideia de evolução, embora a história seja invocada e, num certo sentido, também uma noção vaga de progresso. Longe também de qualquer tentativa do tipo hard Science de explicar a “passagem” da natureza à cultura e a sociedade. No entanto remete também vagamente a concepção maravilhosa do Marx para dar conta desse problema.
No marxismo de bolso, todo mundo sabe que a noção fundamental aqui é a de trabalho, aquilo que transformou o macaco em homem. Mas o que não se explicita é o que subjaz a essa ideia de trabalho, que é transformação concomitante da natureza e do homem. Aliás, Marx curiosamente inverte o postulado evolucionista, dizendo que não é o macaco que explica o homem, mas o homem que explica o macaco.
Quando o homem “primitivo” (ou teu chipanzé?) toma um galho de árvore e o utiliza como alavanca, diz Marx que ele “subjetiva” a natureza, projeta nela uma intenção humana ao apropriar-se dela, mas ao mesmo tempo “objetiva” uma intencionalidade que é puramente potencial e sem forma, ao criar desse modo uma ferramenta para potencializar sua ação sobre a natureza. Os dois processos são interligados, dialeticamente, e ao longo dele se dá a “formação” do homem. Esse elemento de “subjetivação” é essencial. O pior arquiteto é melhor que a melhor das abelhas, porque sua colmeia, perfeita, é construída a partir do instinto geneticamente gravado nelas. Mas o arquiteto, por pior que seja, precisou primeiro conceber e projetar a casa em sua mente, antes de lhe dar forma enquanto construção. 
Como isso é um processo, não tem sentido atribuir-lhe um “momento” no tempo, as 23:59h da “véspera”, para se falar em “criação” da cultura. Leroi-Gouhran faz uma análise minuciosa com base na arqueologia e paleontologia para mostrar as transformações do equipamento físico ao longo da evolução do protoanthropos até o homo sapiens. Postura ereta, desenvolvimento da caixa craniana, aumento do volume do cérebro, especialização da função da mão pelo desenvolvimento do polegar opositor etc. etc. Pesquisas do tipo do Jared Diamond leva tudo isso em conta, mas se preocupa em ver o que seria “natural” apenas em termos de mudança biológica do corpo em sua correlação com o ambiente, tudo isso sendo gravado no DNA para depois evoluir pelo aprendizado e transmissão de conhecimentos de uma geração a outra etc. etc. Estou simplificando de uma maneira odiosa, mas o fato de se querer buscar o que é “natural” ao homem em sua constituição biológica ou do seu meio é que “engessa” essa concepção de um modo incompatível com o que faz a antropologia.
[Romulus: Não só engessa. Eu acho que é quase impossível pois não há como isolar as variáveis retrospectivamente. E tantos são os “homens” e os seus respectivos “naturais” quantos processos de “auto-domesticação” autônomos tiverem ocorrido no mundo.]
Não é que os antropólogos que se ocupam dessas questões ignorem esses elementos. Mas consideram o seu arranjo e transformação a partir de um outro foco, a capacidade humana de simbolizar, substituir coisas por sinais, signos e símbolos, do gesto à pintura rupestre e desta à linguagem da fala e por fim à escrita como meio de comunicação e transmissão não só de conhecimentos utilitários à sobrevivência, mas também de sentimentos, emoções, ideias e valores na interação não só com os outros homens, mas também com o “sobrenatural”.
É nesse sentido que dizem que não há que se buscar o que é “natural” no homem (e sobretudo não na sua constituição física e biológica) porque não há uma “natureza” à qual pudessem voltar. Sem a capacidade de reunir de forma sintética e organizar na mente (isto é, simbolicamente) todas as informações dadas pelo meio, e sua reação diante delas, o homem seria, no dizer de Geertz, um feixe de sensações e sentimentos descoordenados, incapaz de agir no mundo em busca da própria sobrevivência. Isso é o que define a cultura. Uma espécie de blue print que habilita o homem a simbolizar. Isso é o que determina a ruptura de uma continuidade com os hominídeos e símios superiores que são nossos ancestrais. Até porque, do ponto de vista biológico, Leroi Gourhan vai dizer que em um certo momento da evolução a espécie se “estabilizou”, não havendo mudanças morfológicas significativas que explicassem sua evolução posterior enquanto homo sapiens.
[Romulus: Concordo com essa ideia]
De um outro ponto de vista, Lévi-Strauss vai falar da “passagem” da natureza à cultura levando em conta a característica gregária de diferentes espécies e sua capacidade de transmitir informações de modo a assegurar a manutenção do grupo. Por isso ele fala do “universo das regras”. Não há bicho mais social que abelhas e formigas. Mas seu convívio e o limite de sua capacidade (divisão do trabalho, técnicas construtivas etc.) é inteiramente dado por uma “regra” que já vem inscrita nelas geneticamente, como instinto. No limite superior, há os nossos parentes mais próximos. Que, sim, têm formas de convívio social mais parecidas com as nossas, se organizam em bandos mais ou menos estáveis, com regras de precedência para o acasalamento, alimentação etc. Esses tem “regras”, em várias áreas de sua vida associada e que não derivam unicamente do instinto. Mas o problema é que elas são instáveis, podendo mudar segundo os indivíduos que fazem parte do grupo em um dado momento, de uma espécie a outra etc.
Então, o problema seria encontrar uma regra que, tendo a estabilidade e fixidez da natureza (o instinto, nas abelhas), pudesse comportar ao mesmo tempo variações como aquelas encontradas entre os macacos superiores. Esta “regra das regras” para ele é o tabu do incesto. Tomando-se a sexualidade como algo “natural” e instintivo, seu exercício, no entanto, não é algo arbitrário dentro da vida associada do grupo (como seus bonobos).
[Romulus: Note que a promiscuidade dos bonobos é com relação a sexo recreativo (que serve para resolver conflitos e tensões) e não reprodutivo. Sobre o comportamento reprodutivo deles eu não sei]
 Há regras, ainda que inconscientes, que dizem o que “pode” e o que “não pode” em termos de trocas sexuais. Este é o momento em que “a cultura trapaceia com a natureza”, inscrevendo na própria relação natural uma regra humana. Por isso a proibição do incesto é a “regra das regras”.
[Romulus: Por que não o contrario? Por que não foi a natureza – com má formação fetal e doenças recessivas – que imprimiu isso na cultura?]
Claro que a forma dessas regras é variável, como nas sociedades dos grandes macacos, mas em seu fundamento há um elemento que tem a imutabilidade do que vem da natureza (como o instinto nas abelhas). Sexualidade é natural, seu exercício é cultural e social. Mamãe não pode, irmã também não, talvez titia porque é irmã da mãe, mas prima é parceira não só recomendável, como preferencial. Isso pode variar, havendo sociedades em que o casamento com a irmã não só é permitido, como também é preferencial (Egito, p. ex.), outras em que, morrendo o homem, o seu irmão tem por obrigação casar-se com a viúva (certamente não era assim na Dinamarca, senão não haveria Hamlet...) etc. etc.  
Em outras palavras, essa intrincada rede das trocas sexuais, em que ao menos alguma forma de proibição existe (o tabu do incesto) é o que organiza os “sistemas de parentesco”. E suas formas são tão pouco aleatórias que Lévi-Strauss pode escrever um livro inteiro sobre As Estruturas Elementares do Parentesco. Mas daí também porque não cabe determinar um “momento” da evolução da humanidade em que esta regra tenha sido “fixada”. E querer buscar argumentos biológicos de seleção natural ou adaptação ao meio é perder de vista o que é a característica própria dessa espécie entre as demais, que é a capacidade de simbolizar. Este é um princípio lógico, não um momento histórico. Nesse sentido, há ruptura e não continuidade (embora em nenhum momento se esteja negando a relação do homem com seu meio como princípio de organização social de diferentes povos e civilizações)
Seguramente é tentador estabelecer um princípio comum que garanta a continuidade da evolução entre espécies (evitando assim o especismo). Mas essa visão geral e generalizadora perde de vista o que é específico, que é, afinal, a unidade do gênero humano (não da “natureza humana”) e a infinita diversidade de suas formas de expressão. São enfoques que se diferenciam no seu ponto de partida e que, portanto, envolvem como consequência visões diferenciadas não só do que é propriamente humano, como também do que é o seu conhecimento. Por isso existe um ramo de estudos chamado antropologia (social, cultural, simbólica, como focos disciplinares distintos), uma “ciência do homem”, que não se reduz a uma “biologia da evolução da espécie humana”, mais “história natural”, ligada à paleontologia ou disciplinas afins, portanto mais propriamente parte das ciências da natureza.
Daí pra diante, as objeções políticas tem a marca do equívoco inicial sobre a “natureza humana” que inclui a propriedade privada (?!) e o mercado (!) 
[Romulus: Ok. Mas embora a “simbolização” seja de fato uma ruptura, é certo que também evoluiu gradualmente. Uma criança não tem a mesma capacidade de abstração de um adulto...
Ora, não é também lícito supor que cresceu conforme crescia in tandem a capacidade cognitiva dos hominídeos, com o aumento gradual do tamanho dos seus cérebros em ~milhões~ de anos? A "civilização", a agricultura e a sedentarização têm "apenas" 10 mil anos.
E, no caminho para chegar até aí - e mesmo depois, em menor grau - ainda havia pressões de seleção natural e ~sexual~.
Você mesmo disse acima que "como [o surgimento da cultura] é um processo, não tem sentido atribuir-lhe um “momento” no tempo, as 23:59h da “véspera”, para se falar em “criação” da cultura".
Fez isso respondendo a uma provocação minha mais antiga (essa conversa tem idas e vindas...), em que questionava esse "corte" - para mim um tanto arbitrário - para surgimento "do homem", vinculando-o ao da cultura.

Tinha até paparazzo registrando o momento em que tudo mudou... rs
Daí que provoquei você falando do "macaco não aculturado" até as 23:59 da véspera, que recebe um "sopro divino" e se torna o "homem aculturado" à 0h do dia seguinte.
Ah, sim?
Pois que dizer então de  "Mogli, o menino lobo"?
Criado na floresta, por animais não aculturados? Nega a ele a humanidade então?
Penso que cada campo do conhecimento humano puxa a brasa para a sua sardinha.
Ubi societas ibi jus diz o Direito: onde há sociedade há direito".
Já a Antropologia, como você tão bem fez aqui, vincula a humanidade a um objeto de estudo seu: a cultura!
Aliás, a denominação da disciplina bem reflete essa pretensão.
Mas se trata, na verdade, da única “antropologia” (agora em letra minúscula...)? Ou seria mais acurado chamar-lhe então de...
–  ... “Cultorologia”?! (agora com direito a maiúscula de novo)
O Jared Diamond, biólogo evolucionista, nos "reduz" "de volta" ao "terceiro chimpanzé", numa evidente provocação. Mas que não deixa de refletir o "puxar a brasa para a sua sardinha" de todos os demais:
– Direito e Antropologia. Mas há (ao menos!) mais um bastante importante ao qual chegarei depois...
Voltando ao biólogo Jared, “leva ‘de volta’" (mais neutro que “rebaixa”) o homem à condição de animal, sem nenhuma distinção ~especial~ na taxonomia. Logra, assim, colocar o homem como objeto de estudo da...
– ... (sua) Biologia!
Bem... já temos Direito, Antropologia e Biologia brigando pela "maternidade" do homem...
E que (grande) "mãe" ainda não compareceu diante do Rei Salomão para pedir o seu pedaço no "esquartejamento" da criança?
Ora, não outra que a que nos deu o próprio Rei Salomão:
– A Religião!
Não preciso reproduzir novamente a belíssima pintura no teto da Capela Sistina para ilustrar meu argumento, preciso?
Pois é...
Muitas brasas brigando por uma sardinha só!
E qual a resposta certa?
Hmmm...
E eu é que sei, uai?
Já fiz a minha (grande) parte:
– Trouxe a ("maldita") pergunta!
Mas...
Se a minha humanidade dependesse de uma aposta, eu, humanamente malandro, apostaria no mais seguro: a média de todas as pretensões à maternidade da "criança" (humana).
Sugeriria eu então ao Rei Salomão que a esquartejasse em tantas partes idênticas quanto fossem as pretendentes?
Em absoluto! Pelo contrário!
Ora, a estatística nos ensina que "a média é (justamente!) aquilo que ~não~ existe na realidade."
Assim, recomendaria ao Rei Salomão que se mantivesse fiel à sua mítica sabedoria, mas aplicada de maneira reversa:
– Negue, Rei Salomão, a criança à "mãe" que se julgar 'a' mãe ao rechaçar terminantemente a maternidade das demais, atribuindo-se o monopólio sobre a criança!
Afinal, mãe que é mãe cria o filho para si ou cria para...
– ... (todo) o mundo?
Segura essa peteca, Antropólogo!
Quanta viagem! "Viagem, viagem"...
]
*
>> Romulus
Homem: do chimpanzé ao exterminador do futuro
Quando vc coloca Sen e Rawls como “liberais”, é preciso esclarecer para os demais que não os tenham lido: são ideólogos do liberalismo político. Não necessariamente do liberalismo econômico. Aliás, parte das proposições de ambos são totalmente incompatíveis com o laissez-faire.
Sobre Friedman, discordo. O que ele defende é uma “renda mínima universal”.
E, aliás, era bom que aqueles que acham (kkkkk) que defendem os ideais de Friedman soubessem que, “no fundo”, em escritos “esquecidos”, ele tinha ideias como essa. Ideias que – Oh, Deus! – poderiam ser classificadas como “vemelhas”.

Imagine!!
Mas...
Uma renda mínima não elimina privilégios da loteria do nascimento. Pode, isto sim – caso seja elevada o suficiente – garantir a tal mitigação das diferenças na chegada.
Dessa forma, para mim a renda mínima friedmaniana não basta.

A “Guerra” continuaria – embora muito mais civilizada.
Ainda haveria proprietários (hereditários) e despossuídos (hereditários
) <<
Antropólogo: A linguagem biológica aqui é ruim, porque hereditariedade implica continuidade de características genéticas ou sociais. Mas ricos proprietários ficam pobres e despossuídos podem virar “classe média”, sobretudo se vivem num governo “social-democrata” de Lula... Você se refere a “funções” ou “papéis” sociais com base econômica não características “hereditárias”
[Romulus: Sim, é verdade. Mas há muitos economistas que defendem que de 80 para cá saímos do capitalismo e estamos mais para um feudalismo financeiro. Isso porque a estratificação está quase cimentada no que separa o 1% dos 99% - e a posição, salvo raras exceções, é hereditária no sentido biológico sim. Eu cheguei a uma formulação parecida – de um pos-capitalismo neo-feudal – autonomamente e fiquei feliz de encontrar depois quem formulasse melhor a ideia:

]
>> Chimpanzés são violentos, territoriais, competitivos e xenófobos. Ao ponto de prepararem emboscadas para matar membros de clãs rivais e roubar suas “mulheres”, cometendo inclusive esganaduras como meio de assassinato e “estupros públicos” para fins “pedagógicos” <<
Antropólogo: Acho que aqui talvez Marx concordasse com a “antropomorfização” do chipanzé. É o homem que explica o macaco, não o macaco que explica o homem... Tanto chipanzés como bonobos...
>> E por que essa digressão?
Bem, tenho de confessar que o “terceiro chimpanzé” me parece, para o bem e para o mal, muito mais próximo do Chimpanzé stricto senso do que do Bonobo.
E daí?
Ora, quem sabe ao certo o que é “natural” e o que não é no “bicho homem”? <<
Antropólogo: Esse é que é o “problema” não? Sobretudo quando o fundamento hard Science pode levar a deslegitimar o que as soft Sciences tanto pelejaram para estabelecer como base de teoria e pesquisa...>> Contudo, parece-me certo que nos aproximamos sim do fim de um dos “tomos” da coleção “História da Humanidade”.
E qual o capítulo final desse tomo?
O momento em que a tecnologia tornará – e isso é inexorável – o trabalho físico (e em parte intelectual) humano irrelevante. Ou, ao menos, diminuirá muito a sua importância, a ponto de se tornar marginal para a geração de riqueza.
Dessa forma, não se precisará mais de “alugar o trabalho da mão de obra” humana.
O capital será, finalmente, auto-suficiente.
Prometeu quebrará as últimas correntes.
Mas só “um” Prometeu sozinho...
(...)
No dia em que eles conseguirem, finalmente, “declarar independência” dos Estados, será o “juízo final”.
E desse julgamento supremo saem, necessariamente:
-  ou os “Campos Elísios” (um “Elysium” sim, mas para todos);
- ou um inferno de Dante para o 99% da população mundial fora do “Elysium”.
*O cenário “Exterminador do Futuro” não é apenas tema de filme blockbuster. Gente bem “esperta”, como o físico Stephen Hawking, acredita realmente na sua possibilidade. Ou, até mesmo, probabilidade. E, por isso, tem sérias restrições ao curso dado a pesquisas sobre inteligência artificial <<
Antropólogo: Ainda que metafórico, seus argumentos são todos mais que convincentes.  Concordo com todos eles.
*   *   *
Atualização 11-10-16:
Pelo Facebook a Vânia, daqui do GGN, chama a minha atenção para matéria que tem tudo a ver com o que discutimos aqui: 



*
E mais: a leitora xodó / guru, Maria, está de volta! Olha aí o comentário ao post:
Voyage, Voyage
Quando montávamos a exposição de Camille Claudel, o projeto expográfico previa colocar Persée et la Gorgone num espaço circular fechado, ao final de um labirinto em espiral, como num caracol... Na versão de Camille, Perseu tem numa mão, erguida ao alto, a cabeça decepada da Medusa com seus cabelos de cobra e, na outra, o espelho, mas colocado de tal modo que, ao olhá-lo, Perseu vê simultaneamente a própria imagem e a da Medusa na superfície polida, onde seus olhares poderiam cruzar-se... Vingança da Górgona, capaz de petrificá-lo mesmo depois de morta?! Imagem terrível da loucura da própria Camille! Brigamos furiosamente. Aquela expografia, que não deixava outra saída para o visitante senão o caminho de volta por que viera, era um convite para enlouquecê-lo, como/ com Camille!
Nunca trabalhei numa exposição em que me emocionasse e sofresse tanto. Aquela moça linda e frágil, artista tão grande, às vezes até maior que Rodin, o que era "impossível" reconhecer naquele século XIX vitoriano, sendo ela mulher. Obrigada a abortar um filho dele, sob a condenação moral da mãe-megera e o olhar de piedade cheio de desprezo do irmão, o fervoroso católico recém-convertido Paul Claudel. E abandonada depois por Rodin, que acabaria por se casar com sua velha criada. Camille, em sua casa cheia de gatos, destrói toda a sua obra que ali se encontra e joga fora, como lixo, os pedaços do mármore precioso... Internada num asilo de alienados, dominada por uma psicose paranoica, recusa-se a comer, temendo ser envenenada, e só aos poucos consegue estabelecer alguma relação com os enfermeiros, sempre cheia de medo. E assim passa 30 anos (eu disse, 30 anos!), trancafiada lá dentro, sofrendo as privações causadas pela II Guerra, a escassez de alimentos, a fome, a perda dos dentes de pérola que um dia haviam enfeitado seu rosto de menina.
Eu chorava a cada texto dos contemporâneos que falavam dela, da beleza grandiosa de sua arte, a cada carta de Claudel que dava conta do estado na irmã no hospício. Por mais estranho que pudesse parecer a quem visse aquilo de fora, chegamos a chamar um padre e o pessoal do consulado francês e improvisamos no museu um ofício religioso para exorcizar seu sofrimento, tanto que ainda chegava até nós, que andávamos aos prantos pelos imensos espaços do pavilhão do Ibirapuera. Por fim, nos últimos dias em que se armava a montagem, como um milagre, uma bênção da própria Camille, encontrei quase por acaso uma carta de Claudel que falava dos últimos dias da irmã. Velha, exaurida de todas as suas forças, enfim se abandonava, voltando a ser criança outra vez. E todos agora a amavam por sua gentileza e doçura. Sorriso desdentado, recebera o irmão com o habitual carinho de infância: Mon petit Paul! Camille morreria alguns dias depois. Em paz, enfim!
Então, por que deixar para o visitante apenas a imagem de terror da loucura? Por que encerrá-los todos, Camille, Perseu, visitante, naquele tenebroso espaço fechado? Que mudasse a expografia, que deixasse alguma abertura para que, saindo do labirinto onde Perseu estava fechado, o visitante pudesse ao menos encontrar outra face de Camille. Ainda que fosse La supliante, dolorosa, humana, demasiado humana!
Viagem, pois não? Pois é. Voyage, voyage.
Olhe para os olhos de Camille Claudel. Quase uma menina. Há neles força voluntariosa, coragem, orgulho, mas também doçura, velada já de funda tristeza. Olhe para os olhos de Desireless. No espelho de Perseu, o olhar da Medusa.
Sim, entendo a força das metáforas, do confronto, do choque: despertar. No asilo que a imagem percorre, igual a tantos outros, igual àquele onde Camille viveu, há dor, sofrimento humano. E, no entanto, talvez ali trafegassem também visões de vulcões, o voo que a força do vento carrega, sonhos de um Amazonas, rios sagrados da Índia, o infinito do mar. Isso nos conta a voz melodiosa. Confrontamo-nos com a Sombra. O mal existe, o desejo assassino, o ódio em estado puro, a violência que explode sem freio, a loucura, habitam o fundo sem fundo de cada um de nós. A que título, então, criar classificações que isolam, separam o informe do caos e a arrogante casca da ordem e da razão com que buscamos nos defender?
Sim, entendo. Mas olhe de novo aquele olhar. Desire-less, duro, quase esquizofrênico, ele apenas espelha a desordem e a dor do entorno. Cruel, sem compaixão. Sem a transcendência que a voz, bela para melhor engano, promete.
Você sabe o quanto conheço as viagens. Os fundos de abismo em que se mergulha em busca da alma. Atravessar a morte, resistir à dor, reencontrar do outro lado a luz e a esperança. Eros e Thanatos, suas épicas batalhas. Mas há que existir um outro lado. E ninguém chega a ele sem com-paixão, este sofrer-com, amor de si que é amor de um outro, seu semelhante, seu próximo, perto ou distante.
Nenhuma viagem é sem risco. O perigo está em toda parte. Da Odisseia a Star Wars, isso sempre nos foi ensinado. E nem se espere, ao final, chegar aos Campos Elíseos. Um Elysium talvez nos espere. E então há que recomeçar o caminho, uma nova viagem. A eternidade não cabe em nossas mãos para que se possa segurá-la. Mas em algum ponto é possível encontrar a glória do efêmero, sua milenar sabedoria. Pode ser o momento em que, sereno, Sísifo toma a sua pedra e volta a subir para o alto da montanha. Ou aquele em que já não se teme o perigo, porque a vida resplandece em tal fulgor que já nada importa, antes ou depois.
Eis o que nos ensina, mais uma vez, outra obra de Camille Claudel. La vague, uma pintura de Hokusai feita escultura, a onda gigantesca ameaçando engolir as moças nuas que brincam à beira da praia. Como hoje é domingo, permiti-vos por um instante, ó desesperançados, apreciar essa obra prima que vale um tratado de filosofia.
O crítico François-Xavier Cécillon aponta que toda a obra de Camille é atravessada por sua dupla relação, com o tempo e a sensualidade:
Tempo e corpo, dois modos de percepção do mundo. Alternadamente, ambos serão virados em seu contrário. O tempo é tanto motivo de alegria quanto de tragédia, tal como a sensualidade, inundada de sol e, depois, reduzida a afronta. Entre os dois, a busca da Beleza.
La Vague pode ser vista como a metáfora do instante, o único dado a viver, o único em que se pode verdadeiramente fazer história. Em um segundo, tudo será recoberto pela água. Tudo será talvez afogado, perdido. A existência será dissolvida. A água, como o tempo, submerge tudo. A água, como o tempo, volta sem cessar, como o fluxo e o refluxo, a ressaca que tudo destrói à sua passagem.
A água, tão fugidia, tão indomável... e eis que Camille escolhe um dos materiais mais duros para torná-la perceptível: o ônix. Sublime aliança dos contrários. O que não se pode prender e o que mais resiste. Assim, é vivendo esse instante, esse fragmento de duração a nos escapar incessantemente, que se torna possível inscrever-se na continuidade, de forma durável.
Mas as três banhistas brincam, sem receio, salpicando-se de água. Riem, despreocupadas, mesmo que a do meio olhe para a onda. Para essas três moças, tão pequeninas, a roda não para. Ainda que, no último momento, se perceba que, lá atrás, a mão que nos sustentava se torna uma mandíbula terrível que tudo tritura. Inexoravelmente. Restará o riso sonoro dessas três moças que se banham, nuas, sensuais e castas ao mesmo tempo. Como o esplendor de um instante perfeito
*
Romulus:
(de volta!)
Voyage, voyage (2)
Maria sai da loucura opressiva de Camille Claudel numa amostra de suas esculturas para chegar à loucura oprimida pelo sanatório. Primeiro, a loucura oprimida é a da própria Camille.
Mas, “coincidência”, surge outra loucura oprimida: aquela testemunhada (?) pelo olhar autista, alheio, de "Desire-less". Testemunha (?) a loucura ao redor, oprimida, enquanto narra, para fora, para a câmera, a sua própria viagem. Narra-a em versos musicados, com a tal “voz bela que engana prometendo transcendência”.
Seguindo viagem, Maria finalmente volta à loucura (aqui também?) de Claudel expressa em “La vague”: “o momento em que já não se teme o perigo, porque a vida resplandece em tal fulgor que já nada importa, antes ou depois”.
Interessante... há muitas viagens, viagens...
Conheço, por exemplo, outra “voyage, voyage”. Essa, então no topo das paradas musicais de um verão, foi parte da trilha sonora ~justamente~ de um momento em que não temi o perigo, porque a vida resplandecia em tal fulgor que já nada importava, antes ou depois. Anos passados numa cidade mágica: o Mediterrâneo, sol, amigos, amor. Certamente “o esplendor de um instante perfeito”.
Aqui essa outra leitura. Uma outra “voyage, voyage”(de quantas?).
Mediterrânea, ensolarada, leve – mas fugaz (ou "e" fugaz? Ou "portanto" fugaz? Ou...):
*
E volta Maria:
Ótimo o seu comentário final, que resumiu minha viagem pelo tema do "caos" e da loucura a partir de Camille, mas a propósito do seu vídeo Voyage,voyage. De 86 a 2008, a mudança de estilo das estrelas musicais produziu outra versão da mesma música.
Meu comentário se referia à versão de Desireless para dizer que, embora apontando um caminho de saída para a loucura - além de mostrar que a Sombra está em cada um de nós: voyage voyage - não chegava à saída que buscávamos na exposição. Não encerrar-se no espaço fechado do Perseu, mas poder ver um outro lado da obra de Camille, ainda que humano, demasiado humano: a suplicante que pede à morte não privá-la de um ente querido.
Essa a transcendência que envolve os labirintos do amor e a sua contrapartida necessária, a compaixão, ausente na versão da viagem de Desireless.
E, por fim, talvez a suprema transcendência, pessoal e intransferível, que é viver a glória do efêmero: a serenidade de Sísifo ao voltar com sua pedra para o alto da montanha (Il faut imaginer Sysiphe heurex, diz Camus) ou a alegria das moças nuas que se banham na praia, apesar da Onda que irá devorá-las no instante seguinte. O instante de liberdade de afirmar o poder da vida e enganar a morte.
Sísifo padece seu tormento nas terras de Hades por ter tantas vezes enganado Thanatos enquanto vivia. Mas nada lhe tirará o glória daquele momento de liberdade em que volta a ser senhor de si, dono da própria vontade. Também as banhistas escolhem a alegria do seu momento de despreocupada felicidade, apesar da mandíbula escancarada da morte prestes a devorá-la nesse mundo de água que, como o tempo, tudo arrasta atrás de si para voltar de novo no fluxo e refluxo perpétuo do mar.
Maneiras de dizer livremente não à morte, mesmo sabendo que ela vencerá inexoravelmente. Momento de liberdade, glória do efêmero que alguns talvez considerem outra forma de loucura. A todas as outras, certamente prefiro esta.
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Quando perguntei, uma deputada suíça se definiu em um jantar como "uma esquerdista que sabe fazer conta". Poucas palavras que dizem bastante coisa. Adotei para mim também.

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(i) "Bonobo - nosso parente mais próximo" - e TARADO!! - Documentário da 'Nature'; mais (ii) Trailer do filme "Elysium" (2013); e (iii) Chacrinha "vem para confundir"; porque afinal é tudo (iv) "Voyage Voyage!" (Desireless) e mais (v) "Voyage Voyage" (Kate Ryan)

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