Por Maria
É Natal! Paz na Terra aos homens de boa vontade?, ou, Sobre Feras e Anjos
Chegamos exaustos ao fim de um ano de desastres inimagináveis da democracia, com consequências mais que sombrias para o destino da nação e do povo brasileiro. Alguém tem ânimo para festas? No entanto, é Natal. Um símbolo de esperança, a nos dar forças para resistir e continuar a luta.
Num balanço do ano que finda, uma tragédia nos alerta que, mesmo em meio ao horror, pode haver lugar para a esperança, a solidariedade e o amor. O massacre em uma boate gay em Orlando pode nos servir de guia para esmiuçar seu indesejável avesso, a cultura do ódio. Hoje presente em todo o mundo, ela está na raiz do golpe de Estado que se empenha em desmontar o país e as conquistas de seu povo.
Sobre feras e anjos. É disso que falamos. Mas esta é uma reflexão sobre o amor, a que nos convoca o espírito natalino. Promessa de um renascer, afirmando a esperança no triunfo da Vida.
É Natal! Paz na Terra aos homens de boa vontade?
Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.
Natal... Na província neva
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.
Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.
E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!
Fernando Pessoa
Pois aqui não neva, nem a paisagem é branca de graça e, no entanto, mesmo sob o calor praieiro que passa dos 35º, é ainda o mesmo o sentimento profundo: estou só e sonho saudade! Talvez do tempo em que o Natal celebrava o nascimento de uma Criança Divina que buscava, na humildade da manjedoura em que foi colocada, entre um boi e um jumentinho, a força necessária para realizar a imensurável missão de salvação da Humanidade, de que a incumbira o Pai...
Por certo ainda ansiamos por uma família, embora também ela não mais se espelhe naquela Sagrada Família que fugiu para o Egito com o Menino, para salvá-lo da sanha assassina de Herodes. O sagrado se esgarça por todas as suas franjas, ou então se converte em fúria devastadora sobre tudo o que se distancie de suas crenças. Tudo se profana nestes tempos difíceis! Embora, talvez por isso mesmo, eles nos obriguem a voltar a contemplar a Humanidade como nossa família, na casa comum em que vivemos. Mas, Paz na Terra aos homens de boa vontade?
Giotto. Fuga para o Egito
Onde encontrá-los, nestes dias sombrios, em que as imagens da mais horrenda violência, da mais deslavada mentira, dos mais abomináveis conluios tramados na sombra contra os pobres e os humildes, que o Filho de Deus tanto amou, encharcam o noticiário cotidiano?
Estes são tempos da "pós-verdade", em que nem mesmo essas imagens que nos mostram o terror são confiáveis, já que podem ser manipuladas em espetáculo, a serviço daqueles mesmos que são os fautores da violência, da mentira, das trapaças contra os pobres e os humildes por todo o mundo.
Entretanto, ainda assim, por trás delas sobram, intactos, nus, a nos desafiar, a dor e o sofrimento humano. Como ignorá-los, como virar-lhes as costas, quando se pretende celebrar o Natal, aurora que prometia trazer ao mundo a paz, conclamando os homens a amarem-se uns aos outros como Deus os amou, ao entregar-lhes o Filho em oferenda de sacrifício?
Por certo, não se fala aqui da doutrina de uma fé e das peripécias de que se constroem seus mitos de fundação, mas apenas de seus símbolos maiores, o amor e a paz que, afinal, se encontram, sob as mais diferentes construções teológicas, em todas as religiões. Por isso, neste dia de Natal, convém refletir sobre esses símbolos e tudo aquilo que, no mundo de horror em que vivemos hoje, torna inviável a sua realidade.
O medo da diferença, de tudo aquilo que distingue o outro de nós mesmos, e a violência como reação que procura destruí-lo, para que não venha a abalar nossas precárias certezas. A cultura da intolerância, do preconceito, do racismo, do machismo, da homofobia e da xenofobia, que hoje parecem constituir um dos principais móveis da política em todo o mundo. A cultura do ódio, em suma.
Dessa perspectiva, dentre os inúmeros episódios que, ao longo deste ano, poderiam ilustram o horror da violência desumanizadora em que parecemos viver, mesmerizados – como autômatos movidos por uma força exterior a nós e que, no entanto, acabamos por acolher no mais íntimo de nós mesmos – um crime de ódio se torna emblemático. Porque no seu cerne se encontra, precisamente, o amor que hoje se deveria festejar, sendo dia de Natal.
12/06/2016 04h45 - Atualizado em 12/06/2016 12h07
Atirador abre fogo em boate gay em Orlando e deixa mortos e feridos
Incidente ocorreu em Orlando às 3h (horário de Brasília) deste domingo. Segundo a polícia, 50 morreram e 53 ficaram feridos.
Eis o incidente que nos faz refletir sobre feras e anjos.
Nunca será bastante lembrar o seu horror, e sentir, como um punhal cravado no peito, "a dor indizível de um proto-genocídio que ousa dizer seu próprio nome", como, na ocasião, se lia a propósito da cena hedionda no blog de Romulus & Maya Vermelha, então ainda hospedado no jornal GGN.
Ainda Orlando. É dessa tragédia que ainda se trata, porque ainda é preciso compreender. Insensivelmente desde então ela passou a misturar-se a todas as minhas leituras sobre o tempo de trevas que vemos cotidianamente no noticiário.
Cheguei até a considerar esse episódio de horror em sua relação com a educação, já que, numa discussão com leitores do blog, tratava-se em certo momento, sobretudo, de falar de uma certa educação que nos faz falta. Compreendemos o quanto, ao vermos a mediocridade e irrelevância do ensino escolar.
Aí corre solta, sem crítica ou consciência, a reprodução de obscuros valores e ideias entranhadas no mais fundo da nossa vida social. São eles que hoje estão no cerne do golpe de Estado que põe abaixo as mais caras (queridas e custosas) conquistas de nossa democracia.
Contudo, saber isso não basta. É preciso ir além.
Orlando não é um acidente, ainda que com proporções de catástrofe. Nem se limita a circunstâncias de espaço e tempo, associadas ou não a projetos políticos mais ou menos tresloucados.
(Pois o noticiário, desde o primeiro momento, não tentou associar o episódio a vagas referências à "origem estrangeira" do criminoso, seus prováveis vínculos com o "islamismo" e até a possibilidade de se tratar de um "ataque terrorista", atribuindo o crime à ação do ISIS? Eis um exemplo do conhecido processo de manipulação mediática para fins políticos, justificando o medo permanente tão necessário ao governo americano desde o 11 de setembro.)
Orlando está, real e virtualmente, em toda parte, espalhado pelo mundo, como um vírus maligno que infecta e corrói a vida em sua própria raiz. E está também muito perto de nós, nas estatísticas estarrecedoras que em 2015 registraram, no Brasil, um assassinato a cada 27 horas. Estatísticas de guerra.
Tristes assassinatos anônimos, cotidianos, que a polícia reluta em investigar e sobre os quais a mídia silencia e a maioria cinicamente se cala. Crimes invisíveis, ignorados, exceto pelos que os denunciam buscando penosamente se proteger.
Homofobia.
É preciso dizer bem alto o seu nome.
Assassinato de LGBT no Brasil: Relatório 2015
RODRIGO LAPA, encontrado morto em sua casa no dia 28 de dezembro de 2016. Até o fechamento desta matéria a polícia ainda não encontrou o assassino.
Salvador, Bahia, 28 de Janeiro de 2016 – Editoria GGB .
Por dolorosa ironia, a população LGBT vive cotidianamente no vórtice de um furacão invisível. Do insulto à agressão e desta ao assassinato, a distância é de poucos passos, no turbilhão de incertezas.
O antropólogo Luiz Mott é um dos bravos lutadores que, no GGB, Grupo Gay da Bahia, mostra o perfil do mal epidêmico que não escolhe idade, sexo ou condição social. Por trás dos números, há vidas em sobressalto, na agonia indefinida e infindável de uma espera. Vítima antecipada, oferecida à sanha de uma insanidade. Cabra marcado pra morrer.
E digo ironia porque o que provoca essa insensatez votada à morte é o cerne da própria vida, sua raiz mais fértil e poderosa. Sexo e seu tabus. As variações do amor e do prazer que ele oferece ao bicho humano.
Por que a homoafetividade deveria ser vista como aberração doentia ou quase monstruosidade? Por que se deveria condenar como se fosse crime a escolha de um(a) parceiro(a) para compartilhar a vertigem do momento de paixão ou o amor de toda uma vida?
Opção? Escolha? Se escolha existe, ela é apenas a da própria verdade de cada um(a): ser ou não ser o que cada um(a) é, no mais profundo de si mesmo(a).
Homossexualidade não é perversão, nem doença que se cure. E homofobia mata.
Redação PragmatismoEditor(a)
HOMOFOBIA15/JUN/2016 ÀS 15:11
O deputado e pastor Marco Feliciano (PSC) não consegue silenciar sequer em um momento de dor. Seus comentários sobre a tragédia são uma mistura de tentar negar que houve homofobia, de culpabilização das vítimas e também de relativização do sofrimento
Entender os mecanismos de construção da homofobia exige que se aprenda a interpretar signos. Se é possível tomar como relevantes os sinais da diferença inscrita no corpo – deficiência física, cor da pele, deformidade, o "a-menos", falta ou falha que marca o "des-igual", seja de nascença, por doença ou acidente – é porque neles se encontra o grau zero da percepção a partir da qual se marca o afastamento do que é "normal", "habitual".
Não só o corpo, mas as próprias linguagens corporais entram no jogo dessa construção. Se crianças e adolescentes as tomam de imediato como "prova" e motivo de bullying, elas são, entre adultos, "indícios" que denunciam.
A elegância do vestuário, o trato e cuidado do corpo, adornos eventuais podem permitir que se "esconda" a condição homossexual, desde que tudo se mantenha "discreto". Já quando o "viado", a "bicha louca" desmunheca...
O trágico é ver que, neste caso, os modos característicos – trejeitos, gestos amaneirados, a voz em falsete, a instabilidade emocional, o "piti", as atitudes dramáticas e excessivas – não são, em grande parte, mais que imitação farsesca de características supostamente próprias à mulher.
Estereótipos apropriados por quem, aceitando-se homossexual, quer assim afirmar sua identidade "feminina". E o resultado é apenas o "ridículo" que suscita o riso debochado, a piada de mau gosto, quando não o escárnio raivoso, frente a quem assim se comporta.
É preciso muita arte e trabalho para "montar" uma drag queen com direito a desfile em Parada Gay.
É desse modo que, deslocado, o preconceito se reproduz e se reafirma, imagem redobrada no espelho.
Entretanto, também é alto o preço da "discrição", ela mesma um tipo de farsa. Pois quem avalia quanto custa "manter as aparências", o fingimento e o eterno disfarce, as artimanhas para se fazer de desentendido, passar por bobo, frente ao interesse e às vezes até o assédio do sexo oposto?
E quando, chegando ao limite, não suportando mais a mentira, se toma a decisão de "sair do armário", não é menor o drama que envolve o gesto de coragem.
O escândalo da família, o afastamento ressabiado e cauteloso de velhos amigos – "eu não disse? sempre desconfiei..." – o esforço de mostrar ao mundo a nova cara, o temor da rejeição generalizada de seu meio social.
Em suma, o sofrimento da vítima de uma forma sutil de tortura, angústia e medo permanentes, parte de uma dor indizível que o mundo só descobre, perplexo, diante do espetáculo macabro de 50 corpos assassinados.
No entanto, o horror de Orlando nos permite a ir ainda mais além. A homofobia revela, em seu núcleo mais profundo, um nó de significações que, uma vez desemaranhado, pode nos servir de fio condutor para desfiar a meada de outras formas de preconceito e discriminação em que se entrelaçam violência, sexualidade e seu tortuoso imaginário, de múltiplas ambivalências.
O machismo não disfarça seu componente explícito de violência. A desvalorização da mulher, da afirmação de sua inferioridade física e social à agressão corporal, mostra apenas o passo a passo de um crescendo.
Mesmo no plano moral afirma-se a sua inferioridade quando é negado à mulher o direito de decidir sobre o controle do próprio corpo, ao optar pela interrupção de uma gravidez indesejada: o aborto é considerado como negação de sua condição reprodutiva que a destina "naturalmente" a ser "mãe de família".
Criminalização do aborto e a opressão às mulheres - 5 de novembro de 2015
Por Thamyra Thâmara
Texto publicado no perfil do facebook de Juca Ferreira, Ministro da Cultura, em adesão à campanha #AgoraÉQueSãoElas (campanha criada por Manoela Miklos, para que homens que tenham acesso a meios de comunicação e espaços de fala garantidos convidem mulheres para escrever no seu lugar)
O mesmo ocorre quando, de vítima, a mulher acaba acusada de ser causa da agressão diretamente sexual do estupro, violência em seu mais alto grau que, ao declarar seu motivo, escancara, enfim, sua lógica.
O raio X do estupro no Brasil em 15 gráficos
Números do Ministério da Saúde de 2011 reforçam a presença de uma cultura da violência sexual no Brasil e as vítimas são as mulheres; veja
De vítima a ré, essa metamorfose passa por um olhar que avalia seus modos "desenvoltos", sua roupa "provocante", sua atitude "insinuante" – sua liberdade, enfim, de ser mulher e afirmar sua feminilidade – e os julga incompatíveis com o comportamento de uma "mulher decente".
Então, do assédio ao assalto, agressão física e estupro, a violência se justifica – "ela mereceu, né? tava pedindo!". Em se tratando da "baranga" mais velha, o estupro pode ser até um "favor" – "ela tava precisada mesmo, né?".
No limite, à violência se soma a crueldade extremada, quando o violador se junta a uma gangue para perpetrarem um estupro coletivo – "não tava querendo? então vai ver o tanto de macho que ela aguenta!".
Não raro, o resultado pode ser a morte pela extensão do dano físico da agressão ou o puro e simples assassinato, após a violação.
Parecia que a tortura não ia acabar nunca, diz vítima de estupro coletivo na PB
Se aqui se trata de um comportamento declarado e visível da mulher que desencadeia a violência, no caso da reação homofóbica, há também um certo sentido de "indecência" – explícita na "bicha", ou apenas suspeitada, por trás da discrição – que agora se soma ao desconforto da suspeita de um engodo deliberado, para suscitar a resposta violenta.
Como poderia alguém ter sido "enganado" por uma mulher "normal", com quem manteve uma relação de convívio próximo, e de repente "confessa" ser lésbica? Pior ainda, como conter o ataque de fúria ao descobrir, antevendo já o prazer de possuir o objeto de seu desejo, tratar-se não da mulher sedutora e fácil, mas do travesti deslumbrantemente "montado", do transexual assumido que se deleita com seu triunfo?
Entre a vergonha e a frustração, a violência pode ir da agressão física imediata ao assassinato, até como vingança planejada.
Não é, pois, sem fundamento conceber-se a ideia geral de uma "cultura do estupro" como síntese dessas diversas nuances de uma mesma pulsão mortífera, associada à sexualidade e sustentada por um silencioso e inconfessado culto à violência. E ele impregna até os poros toda a vida social brasileira.
Nem mesmo o racismo escapa à força desse complexo de imagens, valores, emoções e sentimentos em que se vinculam sexualidade e violência.
Dilma pede desculpas a médico cubano hostilizado em Fortaleza http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/10/1360308-dilma-pede-desculpas-a-medico-cubano-hostilizado-em-fortaleza.shtml
O que é a nossa tão festejada miscigenação, que evidenciaria uma suposta ausência de preconceito racial (e sob a qual, naturalmente, se torna invisível e se justifica o racismo), senão o resultado da violência sexual que permitiu ao senhor "servir-se" de seus escravos(as) pelo prazer do próprio gozo ou, em se tratando das fêmeas, eventualmente também para o aumento do plantel da mão de obra que tocou o engenho, a mineração do ouro, a fazenda de café?
Johan Moritz Rugendas – Negros novos
Estereótipos sexuais racistas impregnam até mesmo o imaginário em que se constroem as fantasias em torno da relação "normal" entre homem e mulher. É assim que se compreende o fascínio da mulata sensual, da mucama dos tempos da senzala à passista de escola de samba, na imagem da Globeleza.
E, menos frequente, ou apenas mais bem disfarçada, se compreende igualmente a atração feminina pelo negro forte e belo – seja ele estivador do porto ou campeão de fitness – que alimenta suas fantasias eróticas com a propalada ideia de uma extraordinária potência sexual.
Ambíguas, transgressoras, perigosas, fortemente ambivalentes, todas as imagens e metáforas amalgamadas nesses complexos simbólicos, que brotam das formas do imaginário onde se entrelaçam sexualidade e violência, claramente desnudam o que os sustenta: a vontade de poder e o desejo de domínio sobre o outro.
Ou, no seu avesso, o risco da fraqueza, o medo da sedução, do desejo proibido da diferença de um outro que é um igual a si mesmo. Frustradas, as forças psíquicas assim mobilizadas explodem em violência homicida-suicida.
Não por acaso existe um tal emaranhado contraditório de representações, emoções e sentimentos, em toda a sua gama sutil de variações e sob as formas em que as conhecemos. Nenhum país atravessa impunemente quase quatro séculos de escravidão, sem guardar a memória dessa violência que encharcou toda nossa vida social, desde a Colônia e mesmo passado já mais de meio século após a Independência.
Entre o desejo de poder e as consequências de seu exercício sem freio, a ambígua expiação do pecado se diversificava. Da alforria tardia e quase inútil do velho negro já exaurido no trabalho do eito até a concessão, em testamento de grandes senhores patriarcais, de verdadeiras fortunas a São Miguel e Almas, em troca da oração perpétua dos irmãos de uma Ordem ou confraria pela salvação de sua alma.
Tudo valia para afastar a angústia incerta da culpa e, com a proximidade da morte, o medo do castigo divino, de que o livrara seu poder na vida terrena.
Jean Baptiste Debret. Castigo de escravo
Isto é o que nossa história nos legou em herança, deixando indelevelmente em cada um de nós, gravada a ferro e fogo, a marca de uma ambiguidade inescapável: "Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou", como nos ensinou Darcy Ribeiro.
Por esta razão pareceu necessário voltar ao massacre de Orlando dessa perspectiva mais ampla, e pensar sua relação com a realidade brasileira atual, sob o prisma da violência e a cultura do ódio cego que se revela em ambos os casos.
Ultimamente, à medida que o golpe avança a passos largos, torna-se quase insuportável ler o noticiário, onde monotonamente se repetem os angustiosos desastres da política e da economia, só em escala ampliada a cada dia.
Então se evidencia o quanto uma cultura retrógrada, preconceituosa, discriminatória, fascista, que nos parecia distante da nossa democracia, porém fundamente entranhada na sociedade, contribuiu para ajudar a produzir esse retrocesso inaceitável.
O ódio cego estimulado em sua origem, praticamente dividindo ao meio a sociedade brasileira, mostra o quanto enfrentar essa cultura do ódio e da violência é uma tarefa necessária e de longo prazo.
Pois é ela que impede – manipulação mediática e outras à parte – que a grande maioria da população sequer compreenda o que está em jogo, entravando a resistência, na luta pelo resgate do país à barbárie que o assola.
Então, com a imagem de Orlando na retina, a tarefa essencial talvez fosse buscar pequenos sinais, indícios da massa disforme da terra em que se enraízam aquela tragédia e estes outros nossos horrores cotidianos.
Pois talvez seja em tais detalhes "banais", faits divers de aparência insignificante, que se encontre uma imagem exemplar, capaz de mostrar por inteiro, numa súbita iluminação, uma síntese do sentido da violência, desumanidade, inconsciência e imbecilização da cultura em que vivemos hoje.
Uma dessas imagens de extraordinária carga simbólica para permitir apreender, em sua polissemia, o sentido e o cerne mesmo dessa cultura surgiu em um episódio inusitado pouco tempo depois. Tratava-se da notícia da eliminação estúpida, desnecessária e cruel de um animal de espécie ameaçada de extinção, a onça Juma, no zoológico mantido nos imensos espaços das instalações do Exército em Manaus.
Juma era a mascote do Comando Militar da Amazônia ali sediado e, por isso, na passagem pela cidade da tocha vinda do templo de Zeus Olímpico, no circuito preparatório dos Jogos que se avizinhavam, a onça foi trazida, sem autorização de órgão militar ou ambiental credenciado, para participar da cerimônia do revezamento da chama sagrada (?!).
Mantida presa com correntes por dois soldados, estressada pela presença inabitual de tanta gente, o barulho, as pessoas que dela se aproximavam para tirar fotos (?!), Juma, ao ser depois transferida para uma jaula, conseguiu escapar, fugindo pela mata existente no interior do zoológico. Perseguida por funcionários especializados em captura e no seu trato cotidiano, ela chegou a ser atingida por um dardo sedativo.
Já cambaleante, língua de fora, desorientada, em pânico, ela avançou, no entanto, em direção a um soldado. E este, por "medida de segurança", a eliminou com um tiro de escopeta. Um só disparo, seco, à queima roupa – e Juma estava morta!
Ao amigo manaura que me enviara a notícia, escrevi, do fundo do mais fundo desânimo: "Na próxima rodada da Criação (caso se dispusesse a uma nova aventura dessas!), Deus deveria pensar se fez bem em produzir o mais predatório ser de toda a sua obra: o bicho homem! Pobre onça, pobre natureza, pobre humanidade!".
Mas o agudo olhar de uma nordestina, bem sabendo do que falava, decifrou o enigma do que me parecia uma violência sem sentido: "Pois lá não era tudo cabra macho? Como a onça avançou nele? Tão forte, armado, como ela não tinha medo? Aí foi um desafio da onça! Desafiou ele... então precisou (?!) mesmo matar ela..."
A cruel realidade dos animais em extinção
Onça-pintada abatida a tiros repete a história da sua mãe, atacada por caçadores
Juma foi morta com um tiro nas dependências do Centro de Instrução de Guerra na Selva (Cigs) depois de ser exibida na passagem da tocha olímpica http://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2016/06/23/interna_nacional,775852/onca-pintada-abatida-a-tiros-repete-a-historia-da-sua-mae.shtmlem
A onça-pintada, Panthera onca, símbolo por excelência da Amazônia – da floresta tropical, onde o caçador furtivo desliza em silêncio no crepúsculo em busca de sua presa – se torna de imediato um ícone exemplar. O iauaretê dos povos nativos é figura central dos mitos de muitas de suas culturas, sendo-lhe atribuído o domínio do fogo, que depois lhe foi roubado pelo homem. Belo, feroz, perigoso, o animal é associado em outros grupos indígenas à sexualidade e ao poder de fugir da morte e, por ser difícil e arriscada a sua caça, o onceiro capaz de matá-lo se torna figura de prestígio social, entre os povos indígenas assim como na sociedade local.
Em suma, é um misto de admiração, medo e respeito o que marca, na figura da onça-pintada, a extrema ambiguidade da relação entre o homem e a natureza. Por isso mesmo, manter tal criatura em cativeiro, acorrentá-la e exibi-la como animal doméstico, como ocorre com frequência nos Batalhões de Selva na região, se torna uma forma de afirmação de poder e domínio – do homem sobre a natureza, do branco sobre o índio e o negro, da civilização sobre a barbárie, e do próprio Estado, de que eles são parte, sobre um território "vazio" que é necessário incorporar à nação e à civilização.
Na onça-pintada se condensa o que o imaginário representa como o que há de mais selvagem e incontrolável na natureza – da floresta e do próprio homem. E quando a domesticação impossível se revela como farsa, só resta, como mostra o "acidente" manauara, o recurso da eliminação covarde daquilo que desafia esse desejo de poder.
Eis o que nos permite ver, nesse episódio, o núcleo duro de uma ambiguidade não por acaso aparentada ao comportamento homofóbico e à onipresença da violência e seu séquito de calamidades que se espraiam em tantos outros domínios da vida social.
Não é essa matéria viscosa que engrossa um caldo de cultura hediondo, na raiz do medo e do ódio reativo incontrolável? Presente no massacre de Orlando, no extermínio de jovens negros nas periferias e favelas, no horror de estupros coletivos, na dizimação secular, e ainda hoje cotidiana, dos povos indígenas. Estes mesmos que têm agora ameaçada a demarcação de seus territórios, em mais um gesto de arbítrio, manobra do governo golpista em favor do agronegócio.
Documento do governo altera regra para demarcar terra indígena
Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, reunido com líder pataxó em julho deste ano
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É dessa cultura que se realimenta o ódio cego no campo da política, sentimento que insensivelmente nos empurrou para a tragédia que hoje promove o desmonte do país, suas instituições, as parcas conquistas de seu povo, num golpe de Estado quase surreal.
Ilegal e ilegítimo, brutal, uma insanidade política, ele é ainda festejado por manipulados midiotas, frequentadores dos comentários dos blogs e das redes sociais. Agora, envergonhados talvez, ou apenas indiferentes, uma vez alcançado seu objetivo, seu número diminui visivelmente nas ruas. Festejamos a boa notícia.
Mas como não perceber, mesmo na sua ausência, a permanência dessa multifacetada cultura do ódio e da violência que lhes dá suporte, gerando intolerância, preconceito, discriminação, incapaz de lidar com a diferença, o medo que ela suscita, a ferocidade cruel como única resposta?
Talvez precisássemos mesmo de uma outra humanidade (ou ao menos uma nova cultura humanista), para começar a consertar um mundo inviável. Quem se engajaria nessa luta? eu me perguntava em desalento. À pergunta retórica, inesperado, outro fait divers daria a resposta.
Ao acaso da leitura de notícias "antigas" – em tempo de internet, redes sociais e outros meios de acesso à informação na era digital, não é já "velho", velhíssimo, o que ocorreu menos de um mês atrás? – a manchete de um pequeno artigo da BBC Brasil chamava a atenção: 'Anjos' impedem protesto homofóbico em funeral de vítima de Orlando.
Como assim? Então Deus respondia ao meu apelo e, na falta de uma ação radical para extinguir um erro em sua obra, já enviava emissários para ao menos minimizar suas consequências funestas? Não sendo ainda o apocalipse, era já, no entanto, a dádiva de um bálsamo, água fresca para lavar e curar nossas almas desesperançadas.
Em forma de contraprotesto, vestidos de "anjos da guarda", duas centenas de manifestantes haviam barrado o acesso de um pequeno, mas aguerrido, grupo da Igreja Batista Westboro (WBC, na sigla em inglês) ao local onde se realizava o velório e se daria a cerimônia do enterro da vítima.
Reclamando-se de uma filiação não oficialmente reconhecida por nenhuma denominação Batista, a igreja, baseada no Kansas, foi fundada em 1955, e a atuação militante de um pequeno grupo de seus membros passou a ser conhecida desde 1991, quando se propuseram a acabar com as "atividades homossexuais" em um parque próximo à igreja.
Desde então ampliaram o escopo do seu discurso de ódio e suas ações violentas, organizando protestos anti-gay em funerais militares, enterros e outros eventos públicos envolvendo celebridades. Seu site se identifica por uma mensagem homofóbica: godhatesfags.com ou deusodeiabichas.com .
Não casualmente, no entanto, sua ação tem também como alvos outras comunidades, não só religiosas, mas de peso e significado social e político, como judeus, muçulmanos e católicos. Assim o discurso "religioso" se mostra capaz de condensar outros tantos significados em áreas diversas da vida social, apontando para a homofobia, a discriminação religiosa, o racismo e a xenofobia. O discurso do ódio desconhece fronteiras.
WBC pickets in Arlington, VA at Arlington National Cemetery
Quanto aos Anjos, são filhos do amor, da solidariedade e da arte. Suas grandes asas de linho branco foram feitas por voluntários do departamento de figurino do Orlando Shakespeare Theater, e um par delas recebeu as cores do arco-íris.
Tais figuras foram vistas pela primeira vez em 1998, no enterro de um homem gay morto em Wyoming. E com sua presença visam dar apoio às famílias das vítimas, mostrando no ato de solidariedade que elas têm aliados e não estão sós.
Quando, após a intervenção da polícia, os manifestantes da WBC foram afastados, a população tomou conta do local, desenhando na própria rua cartazes onde se liam triunfantes afirmações de alegria – hoje nossos corações soltam um grito de amor/ Orlando é forte/ Orlando unida/ o amor vence..
Feras e anjos. Imagens-síntese de um mundo dilacerado, espedaçado em frangalhos, já incapaz de justificar-se e que, ainda assim, pode tentar impor pela força bruta a lógica de seu domínio, frente à resistência contínua, diversa e fragmentária, dispersa em miríades de ações pelos quatro cantos de um planeta em perigo, por uma humanidade em risco de extinção.
Um mundo em estado de "paralisia orgânica", como definiu Gramsci a crise de hegemonia, quando a velha ordem ainda não acabou de morrer e o nascimento do novo é ainda apenas esboço de luz desenhado no horizonte.
Neste difícil parto da História, contra o ódio e a violência, que seja, pois, nossa arma e nosso escudo o amor. Aquele mesmo presente em Orlando antes do massacre. Aquele mesmo destroçado em guerras insanas ou naquelas não declaradas, em que a fome de alimento e dignidade, a miséria da ausência de direitos e justiça ceifam vidas humanas de vítimas indefesas, em números incontáveis.
É contra esse estado de coisas que é necessário invocar, como ensinam os Anjos de Orlando, a força do amor, na infinita diversidade de sua expressão sufocada. Então a palavra do poeta pode tornar-se farol a guiar a travessia.
Ouçamos Khalil Gibran: "Quando o amor vos fizer sinal, segui-o; ainda que os seus caminhos sejam duros e escarpados. E quando as suas asas vos envolverem, entregai-vos; ainda que a espada escondida na sua plumagem vos possa ferir". Talvez seja esta a grande luta e a difícil lição a se aprender, num tempo cruel de nossa História. É por isso que ainda celebramos o Natal.
Khalil Gibran
UAU! Sequência perfeita, mostra bem conexões que estão soterradas em níveis muito profundos. Algo que ainda me fez pensar, diante do que está falado acima, em como a linguagem da guerra se tornou uma operação cotidiana entre nós: guerra aos mosquitos, bactérias, à sujeira, etc. Mais do que mosquitos, é a guerra que está em toda parte: o meio se tornou o fim da relação. Tenho lá minhas desconfianças de que eventos da proporção como foram as duas grandes guerras do século XX não iam deixar a "paz" viver tranquila: seria preciso qu uma continuidade daqueles eventos operasse em um outro nível, para que as nações compusessem esse frágil equilíbrio que veio depois. Por isso mesmo, a guerra, como era chamada, nunca mais seria a mesma: regular, como se dizia. Agora, trata-se de, em diversos níveis e escalas, transferir a guerra para o que se compreende arbitrariamente como um nível abaixo: se sou exército, luto contra bando; se sou macho, contra gay; se sou gay, contra trans; se sou dona de casa, contra insetos; se sou médico, contra cubanos; se sou mercado, contra PT; se sou PT, contra si mesmo (aí entra o divã...)... Piero
ResponderExcluirPaz na Terra, Homens! Esse seria o meu título, que continuaria assim: Ricos, Brancos, Homofóbicos, Egoístas, Preconceituosos, Violentos, Destruidores. Mais Humanidade, por favor. Nasçam de novo!
ResponderExcluirCaro Romulus, como Psicanalista e Servidor Público, deixo uma contribuição extraída de um texto do colega Contardo Calligaris sobre o evento de Orlando:
ResponderExcluir(...)Há uma regra básica para a qual nunca encontrei exceções, em mais de 30 anos de clínica. Claro, qualquer um pode discordar do desejo e da conduta sexual de outros; mas quando alguém se sente compelido a agir para impedir ou punir uma conduta sexual diferente da sua é que, de fato, ele está tentando reprimir seu próprio desejo de se engajar nessa conduta diferente.
Quem agride, abusa ou tenta inibir os membros de uma minoria sexual está tentando reprimir nele mesmo um desejo que, às vezes, ele nem sequer consegue reconhecer. E, em geral, quem se dá a pena de legislar em matéria de sexo está tentando reprimir nele mesmo um desejo inconfessado de cair na "gandaia" que ele quer conter. (...)
Acho que este trecho ajuda-nos a entender que o que odiamos no outro não é a diferença, mas o que identificamos como semelhante e isto é insuportável para a nossa consciência: não odeia a "bichice" do outro, odeia a "bicha" que há dentro dele e é desejante. Por isso tanto esforço para mantê-la "quieta", desde a construção de uma imagem máscula e truculenta até a eliminação da ameaça que é este outro/eu mesmo.
Nosso desafio é identificar como isso se aplica ao ódio político. Pensarei sobre isso.
Grande abraço e parabéns pelo texto.
Existe entretanto o problema econômico de que a guerra é sempre a mãe de todas as expansões fiscais (ninguém se preocupa em deficit se a razão do deficit é matar inimigos). A guerra também é a mãe da inovação. Basicamente todos os avanços tecnológicos do século XX e boa parte dos do século XXI foram feitos com o propósito primeiro de matar gente. A guerra também é a mãe da reconstrução - novamente os investimentos em reconstrução para criação de uma nova situação geopolítica em geral acontecem a fundo perdido. Talvez por isso que Trump e Putin apontem para uma re-corrida armamentística e um reposicionamento geopolítico colocando novamente as nações como centro do jogo. Isso apavora o establishment capitalista financista trans-nacional. Eles conseguiram com o dinheiro o que se fazia com as armas anteriormente, a dominação inclusive das estruturas de poder de forma a capturarem o mundo todo para o seu interesse, como um parasita que insere uma toxina no sistema nervoso de um organismo e esse passa a lidar com o parasita como se fosse seu filho, alimentando-o e protegendo-o.
ResponderExcluirPiero a Ciro: Muito interessante essa ideia de que o $ das armas foi prá banca... Até porque, curioso né?, todo comércio internacional de armas dentro dos blocos se regulou, e o $ passou a fazer movimentos similares, mas assumindo novas rotas. Só uma coisa me vem à cabeça sobre a guerra ser a "mãe" de todas expansões: tem muita água que rolou na antropologia assumindo se não seria o contrário, se as expansões não seriam as mães de todas as guerras; o debate é gigantesco, procurou cercar o máximo possível de exemplos socio-históricos, e, no meu ponto de vista, é que a melhor resposta é que uma coisa não está necessariamente conectada à outra. Agora, quando se ligam uma coisa à outra (vários exemplos, enfim; mas parece que a modernidade o fez de maneira, como dizia Lula, "nunca antes vista..."), aí sincronizam-se elementos de várias ordens, e as teses de autonomização das esferas vão por água abaixo... O Charles Tilly, gigante das análises da sociogênese do Estado moderno, tem a teoria que guerra, Estado e capital uma hora passaram a agir como "quadrilha" (rs, o termo é por minha conta, mas a ideia vai por aí...), e aí quem táva fora ia aos poucos sucumbindo: a guerra expandia, o capital extraía, e o Estado reproduzia. Assim se passou de uma Europa com uns 700 proto-estados (mini-estado, cidades-estado, etc), para o que se vê hoje. E daí pro resto do mundo... Eu tenho impressão (e esse é um dos temas que tô trabalhando agora, mas por outras vias) que essas relações têm todas um componente dialético: sua retro-alimentação é também o fator de seu desgaste. Mas, tal e qual o capitalismo, essa desgraça sabe se reinventar e adiar o inevitável (há um século vemos o dia final da tendência decrescente da taxa de lucros, né não?). Para mim, esse deslocamento da guerra, enfim, dos coletivos mundiais simétricos para os fractais assimétricos é um passo, digamos, similar a uma dessas resoluções de intervenção estatal para salvar o capital da ruína. Até onde vai se chegar? É uma questão, mas há quem diga que um dia o Estado vai querer regular a relação entre pulgas e ácaros, se é que já não o faz. Enfim, viajei...
ResponderExcluirCiro: Claro que falar da expansão e da guerra é uma questão de ovo ou galinha. O que eu queria apontar é que no consenso "liberal" só existe um deficit que é aceitável, o deficit causado para matar gente. Era nesse sentido.
ResponderExcluirPiero: Sim sim, pensei alto, não exatamente questionando, mas trazendo a bola para um puxadinho antropológico....
ResponderExcluirCiro: Essa matéria na BBC mostra claramente de onde veio a tão famosa "inovação capitalista". Basicamente a maioria das tecnologias fundamentais na produção de um smartphone foram produzidas para uso militar.
ResponderExcluirhttp://www.bbc.com/news/business-38320198
Caro Luciano, você levanta uma questão que me parece central sobre o texto. Relendo-o à luz do seu comentário, sem ser psicanalista, pareceu-me, contudo, que a ambivalência assinalada a propósito da onça – figura do imaginário que representa o que há de “selvagem” (na natureza e no homem) e que precisa ser “dominado” – contempla precisamente o medo e a atração de um “outro” que se esconde no interior de si mesmo. Como Calligaris assinala com razão em relação à homofobia, não é a diferença, mas o medo à semelhança que ela esconde, o que desencadeia a reação de ódio. Mas parece-me que a imagem da onça ocupa um lugar central porque nela se condensam significados mais amplos e profundos.
ResponderExcluirEla remete, em primeiro lugar, diretamente à sexualidade, de que é símbolo em algumas culturas indígenas, mas também à morte, de que sabe escapar por sua astúcia. Astúcia esta que faz da onça a dona do fogo, de que o homem só se apropria por meio do roubo, colocando-se, portanto, nesta relação também culpa e vergonha a serem negadas. Assim, “vencer” a onça, seja na caça, para matá-la, seja na “domesticação”, para garantir seu controle, atestam um impossível desejo de domínio sobre o que por sua natureza mesma é selvagem, a que só a “morte”, real ou simbólica, pode dar fim. A figura de Thanatos, silenciosamente aqui evocada, não remete igualmente à ideia de um gozo interdito, la petite mort a que não se pode aspirar sem culpa, assim como a um desejo de morte como alívio definitivo, ou reativamente, projetado sobre o outro, ao qual se associa a “culpa” pelo próprio mal-estar diante de uma missão impossível?
Acredito que associar todos esses processos ao “poder”, como um significante que se espraia por todos os domínios, poderia ajudar a enfrentar o desafio de pensar como esse complexo “desejo-culpa-vergonha-medo-violência-morte” condensado na figura da onça pode ser um instrumento para a compreensão do ódio político. O “poder” desde o início transferiu para o campo histórico e social – da sociedade colonial escravista, patrimonialista, estamental e patriarcal – a análise do machismo e seus associados, a homofobia e a violência contra a mulher e, naturalmente, do racismo. Quando penso nos principais veiculadores do ódio político, as classes altas e médias, e os grupos que a elas se identificam, vejo no medo, associado a um sentido de culpa e vergonha, o principal motor de sua reação de violência.
Os parcos avanços sociais conseguidos pelas políticas de inclusão dos governos do PT de fato representam uma “ameaça” aos seus “privilégios”, reais ou imaginários. Reais, para as elites descendentes de senhores de engenho ou seus afins financistas contemporâneos. Imaginários para as classes médias tradicionais de profissionais liberais ou a “nova classe C”, de ascensão social recente, graças às políticas de inclusão. No primeiro caso, o ódio é reação a um medo “legítimo”, a que pode associar-se talvez um sentimento recalcado de culpa, sabendo o custo da desigualdade social a que se devem seus privilégios. No segundo, o medo se associa à condição de pobreza a que se recusam voltar a identificar-se, talvez uma vaga culpa por negar o esforço da luta da família para sair dela, e certamente a vergonha de ver-se novamente conduzido a essa condição negada. O termo “coxinha” designa todo esse complexo de elementos, enquanto, no campo oposto, “petralha” busca unificar em um único operador social, um partido político, a causa de seus múltiplos medos.
Unificando os dois campos, para melhor dividi-los em termos antagônicos, o valor moral do “combate à corrupção” funciona como cimento de uma luta ideológica sem quartel, em que os dois lados se espelham um no outro. Deste modo, operando com categorias e mecanismos em ação também na produção dos estereótipos que “justificam” o preconceito e a discriminação, é de estranhar que machismo, homofobia, racismo, violência contra a mulher e até xenofobia entrem no caldo da cultura do ódio que domina o cenário político?
Grato pelos comentários Maria, adorei o seu texto.
ResponderExcluirEle me fez pensar em uma questão que me intriga a muito tempo: como pensar o fato dos maiores (e mais raivosos) quadros da direita terem suas origens ideológicas e de militância nos partidos de esquerda? Esta dialética de identificações e estranhamentos poderiam se aplicar a estes casos?
Abraços